terça-feira, 30 de agosto de 2011

Causa mortis

7:30 AM - Acordo pensativo, o que este mundo me oferece?

7:31 AM - Ainda na cama, estou atrasado para o trabalho mas permaneço aqui sem perspectivas.

7:35 AM - Estou sentado escrevendo alguma coisa, talvez um testamento mas, não acho que tenha muita coisa neste apartamento pequeno além de um quarto/sala, cozinha, banheiro e varanda.

8:00 AM - Resolvi não ir trabalhar hoje e nem dar satisfação do caso, minha ex-mulher ligou, dizendo que eu deveria buscar o Felipe na escola, sim eu tenho um filho, ele tem 15 anos e manda muito bem nas matérias, principalmente nas exatas.

8:20 AM - Já me perguntei antes o que este mundo me oferece?

8:25 AM - Vou dar uma caminhada no parque, talvez encontre alguma resposta em meio as musicas do MP3 ou então nas imagens que se formam quando os pássaros voam em bando ou até mesmo nas arvores que se estrebucham com o vento.

8:40 AM - Recebo uma ligação no caminho entre a porta do AP e o carro que fica no estacionamento subterrâneo, creio que estava entre os andares 6 e 5, descendo.

8:50 AM - Desligo o celular, minha face sem expressões. Era minha ex-mulher novamente apenas para dizer que minha vida está errada, mas quem se importa, ela é minha.

9:10 AM - Trânsito infernal nesta selva.

9:30 AM - Finalmente consigo me sentar no banco do parque, observo o lago, os pássaros e as arvores como havia dito. O tremular das bandeiras durante um ensaio para a parada militar que ocorreria dias após.

9:50 AM - Escutando uma musica que me faz lembrar das coisas que passei, lembro-me da vida que tinha antes e me vejo hoje num estado de euforia e alegria, nada de mais, apenas uma nostalgia lembrada pela musica que tocava naquele réveillon, lembrei da minha juventude ao som de Ivan Lins - Novo Tempo. “No novo tempo, apesar dos castigos. Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos, Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer.”

10:30 AM - Aquela natureza em meio a metrópole, admiro estes animais que vivem aqui, são fortes o suficiente para resistir ao contraste causado entre a porta de entrada e a porta de saída, sempre aberta para que a escolha seja feita. Arrisca-se na metrópole ou se salva preso aqui neste paraíso.

10:45 AM - Me proponho a caminhar, apenas alguns metros, o parque é grande, mudar de ares as vezes é bom como “passar uma tarde em Itapuã”,  ao som de Vinicius e Toquinho.

11:00 AM - Hora de pegar o garotão nas escola.

11:30 AM - Recebo aquele abraço apertado dele, que me contava as novidades e também falava sobre uma garota de sua sala, a Gabriele, que os dois conversavam muito e que era legal ter uma amiga como ela.

12:00 PM - Um telefonema do hospital, exigindo meu plantão, não disse acima mas sou médico, um acidente em larga escala na auto-estrada onde dois ônibus se chocaram frontalmente, alguns sobreviventes e muitas pessoas mortas. Não iria trabalhar esta manhã, pois seria minha folga.

12:15 PM - Deixando Felipe em sua casa e partindo para o local do acidente.

12:35 PM - No trajeto, escuto uma explosão que me fez apertar o acelerador, pista interditada, engarrafamento de 2 KM.

12:40 PM - Saio do carro e resolvo ir a pé.

13:00 PM - A fumaça tomava conta do KM 137 SUL da rodovia. Algumas vitimas no chão, queimados, alguns foram arremessados para fora no momento da colisão, relatos de uma jornalista, passageira de um dos ônibus, a mesma apenas fraturou um braço, estava em sã consciência, foi imobilizada por segurança, conseguia relatar com clareza os acontecimentos.

13:30 PM - O chão, manchado de vermelho, um dos ônibus ainda estava em chamas, haviam pessoas dentro dele, umas morreram no impacto, outras gritavam por ajuda de dentro daquele compensado de metal retorcido. Algumas pessoas tentando ajudar com o que podiam utilizando os extintores dos carros, continham parcialmente as chamas. Os bombeiros haviam sido acionados há 5 minutos.

13:40 PM - Entrando por entre as placas de metal observo um menino deitado entre os braços de uma jovem, a mesma estava inconsciente, respirava com dificuldades, ao retirar os entulhos de cima dela percebi que algo perfurou seu corpo, atravessando o pulmão direito. Chamei os paramédicos para retirá-la dali. O bebe, me viu e esticou sua mão. Aproximando-me, vi que não sofrera nenhum ferimento, pois a mãe havia salvado sua vida.

13:50 PM - Encaminhando o bebe para a ambulância, onde receberia o tratamento apropriado continuei as buscas por sobreviventes e ajudando quem precisava naquele cenário.

14:00 PM - Mais uma explosão dentro do ônibus em que eu estava, vi o fogo partir pra cima de mim, minha roupa incendiando, sentia minha pele se rasgar com o calor que havia dentro de meu jaleco. Olhei para fora esperando ajuda e o que vi foram faces aterrorizadas pelo ocorrido. Um desmaio me concedeu descanso.

16:30 PM - Escutava as pessoas ao meu redor, Felipe chorava dizendo que aquilo não podia acontecer. Os médicos ali diziam que 70% do meu corpo foi comprometido pelas chamas e que seria difícil sair dali sem sequelas. Os sons foram se calando até que não ouvi mais nada.

18:00 PM - Escutei um dos médicos dizer que não haveria chance. Me apavorei, porém os batimentos cardíacos estava cada vez mais espaçados. Até que cessaram.

18:10 PM - Os médicos ainda tentavam me reanimar, com desfibrilador, massagem cardíaca, injeções de adrenalina.

19:00 PM - Morte cerebral relatada.

20:00 PM - Ainda estou aqui. Agradeço ao desmaio, que retirou de mim o sofrimento. Mas sofri ao deixá-los, sofri ao saber que meu menino sentirá minha falta.

21:00 PM - Estou naquele parque novamente, mas não entre o meio fio. Agora estou do lado que eu queria estar. As arvores ainda estrebucham com o vento que também causa pequenas ondas na água do lago central, os pássaros não cantam, pois é noite.