terça-feira, 7 de junho de 2016

Viagem astral

Entre os canhões e trincheiras caminhei entre os escombros com você em meus braços, seus olhos estavam cheios de esperança. Certas horas em que eu precisei de todo o meu vigor físico ou quando utilizei minhas mãos para empunhar um rifle encontrado junto aos corpos no chão, você foi de cavalinho, numa dessas mochilas grandes e confortáveis por dentro, sempre sendo meus olhos e chamando-me de papai, a hora que você teve medo, foi exatamente quando eu me virei para protegê-la dos tiros que viriam.

Em meio aos pallets, pedras, corpos, templos, glórias e devaneios a noite caiu, nos escondemos em um lugar puco claro, troquei sua roupa, lavei seu rosto e te vesti com algumas vestes que haviam por ali, engraçado como você não deu um pio, conversou comigo como conversamos no aconchego do lar, beijou meu rosto com o mesmo carinho de sempre, te abracei e segurei as lágrimas, elas vieram enquanto eu te via dormir. Adormeci também, após te cobrir.

Acordamos com uma bomba, ao longe, era noite ainda, você estava exausta mas eu sabia que precisávamos seguir viagem, sair dali com vida. Com todo cuidado te embalei em meus braços, ainda enrolada na cobertinha que carregamos no ponto de partida, tínhamos algumas frutas que guardei, seria a nossa sobrevivência, deixei até de comer para que nada te faltasse, estávamos no terceiro dia de busca por um local seguro.

Sei que parecia incorreto da minha parte, mas seria necessário atravessar o front e ir em direção ao mar, lá entraríamos o primeiro barco para o abrigo, nos refugiaríamos até que aquilo acabasse, rifle carregado, pendurado em meu ombro e você descansava. 

Enquanto acordava, fazia frio naquela madrugada, inicio de manhã. Vi os aviões rasgando o céu e sumindo no horizonte. Subimos num ponto alto, eu precisava observar além das ruínas. Pedir ajuda naquele momento não era opção, não sabíamos quem estava do nosso lado, ali, naquele momento, você tinha a mim, eu era o seu abrigo, comigo você estava em segurança.

Amanhecia com o Sol entre as nuvens, a luz clara e encoberta anunciava que a chuva chegaria cedo ou tarde, interrompendo, por hora, a nossa caminhada. Olhar pela janela da casa parcialmente destruída pelas bombas nos dava pouco mais de 3 metros de segurança. Ouvi passos e nos escondi você olhava para mim, apreensiva, segurou o choro, vi nos teus olhos o pavor estampado pela primeira vez. Pressentiu algo que eu não soube identificar, mas não tive dúvidas em te aconchegar entre as pedras da parede destruída e apontar para a única entrada possível. Eu estava olhando para você e ao mesmo tempo conseguia perceber qualquer movimentação, estávamos na penumbra a qual favorecia a nossa posição. Os passos pareciam ter pressa, falavam outro idioma, imperativos, o som foi ficando mais alto, até que diminuiu gradativamente. Passaram, estavam mais longe. 

Era o momento de sair dali, estávamos no meio do fogo cruzado. Olhei me esquivando, enquanto você ainda sentada nos tijolos quebrados comia meia banana que estava na mochila. Preferi desta vez te guardar, a mochila era grande, confortável, te acolhia como os meus braços. Você sabia que o momento era complicado, você disse inclusive que queria ir pra mochila, acho que parecia uma diversão e sua cabecinha de 3 anos queria brincar.

Corri o mais rápido que pude quando em campo aberto tivemos uma surpresa, rajadas de metralhadora, eu simplesmente pude correr, meio sem rumo, meio sem porque. Poderia ter me jogado no chão, mas por 1 milésimo de segundo achei que pudesse feri-la, pensei que poderiam nos encontrar, que algo ruim aconteceria. Por sorte nenhum tiro nos acertou e atravessei. Ao chegar no outro lado, atrás de uma árvore, abri a mochila e você estava ali, sorrindo, parecia ter gostado da brincadeira, da chacoalhada que rolou ali dentro. 

Enquanto tirava você dali, você pedia, “papai, quero água”, abri o cantil e deixei você tomar o quanto quisesse, se esbaldar. Logo após, descansávamos sob aquele céu sórdido e inimaginável, eu pensava em como tirar a gente dali, você comendo os pedacinhos de maçã que eu cortava aos poucos. Eu sabia que os suprimentos estavam acabando e que ficaríamos sem comida no dia seguinte, era necessário levantar e partir, enrolei mais uma vez você nos panos que tinha e desta vez fui te abraçando enquanto apertava minhas bochechas. Te coloquei no meu ombro deitada; e durante a caminhada, adormeceu.

Estávamos a pouco tempo de chegar ao destino e a nossa missão ao fim. Você acordava enquanto eramos socorridos pelas tropas aliadas em missão de paz.

Te dei banho, comida, e enquanto guardava teu sono sentado numa cadeira, fumando um cigarro olhando o mar, algo me chamou atenção. Arrumando as tralhas na mochila, meus olhos se enchiam.

Um furo de bala.

Você e eu, intactos.

Dedico a mocinha que amo tanto nessa e em outras vidas.
Papai te ama, nenê!