terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Mulheres Selvagens


"Como em um instante em que as estrelas se assimilavam aos teus olhos brilhantes e como era bom o toque das suas mãos em minha cabeça quando você acariciava brutalmente meus cabelos. Você olhava para mim com um semblante tão puro que dava gosto de tentar compreender todo o universo que girava em torno de sua mente, você era sagaz, esperta, sabe? Teu sorriso ornava com os seus caninos, eu diria, democraticamente saltados, parecia uma eterna junção entre o egocentrismo de Nietzsche e a crueldade de Machiavelli, era assim que eu gostaria de descrever a sua beleza entre todas aquelas estrelas que eu via em teus olhos, Olga."

Este seria um fragmento de uma carta deixada por Fernando horas antes de partir. Fernando era um rapaz adorável, bom filho, aquele que sempre tirava notas altas na escola e se formou com louvores pelos professores em Harvard. Ele era um cara que adorava física e tinha como plano de vida um dia ser como Albert Einstein. Era um garoto brilhante com inúmeros prêmios na escola, universidade, enfim, ele tinha tudo na vida. Foi no inverno de 78 que as coisas começavam a se tornar um pouco turvas.

De certa forma, Olga provava para si mesma a necessidade de sobreviver no inferno, estava começando a universidade em uma época um tanto quanto complicada para as mulheres, ainda mais as ditas mulheres livres. Olga tinha um semblante jovial, em suas vestes ela carregava a revolução e em seu peito, como um amuleto, levava o anel que tinha ganho de seu avô antes do mesmo partir dessa para a melhor. O avô era a única pessoa que ela tinha na vida, a criou e a criou sem medo do mundo, todos diziam “Aroldo, você criou um homem”.

Ela não entendia, era pequena demais para entender o por quê de alguém falar assim, mas se perguntava o por quê ela não deveria fazer o que ela fazia. Olga sabia atirar, subia em árvores, cozinhava, caçava, montava barracas e enfim, adorava trabalhos manuais pesados, Olga tinha o sonho de comprar aqueles tratores de demolição, aqueles que derrubavam prédios com duas ou três pancadas. Olga tinha um tom meio excêntrico, gostava de ler coisas estranhas como “As enciclopédias sobre os sapos venenosos de Madagascar” ou então “O manifesto comunista”, e claro, adorava obras filosóficas de Schopenhauer, Tomas More e afins.

As coisas pareciam meio complexas naquele verão, fazia calor enquanto Olga comprava um sorvete a alguns passos de Fernando, que parado na banca procurava aqueles quadrinhos do Pateta, ele adorava o mundo Walt Disney. Pato Donald era seu preferido, mas naquele momento ele queria ler algo do Pateta, as ruas estavam completamente iluminadas pelo sol que batia em cada pedaço sem cobertura, quando ele deu um passo para trás e encostou em Olga que desviando sua rota deu de cara com o poste. A casquinha foi direto em sua camiseta e Fernando emudeceu. Os dois se olharam, Olga estava com muita raiva, mas também ficou muda, eles apenas se olhavam enquanto o dono da banca arrumava os jornais se prestar atenção em nada. As buzinas dos carros foram sumindo, o vento batia quase que imperceptivelmente, o sol não incomodava mais... momento quebrado por Fernando que se desculpou pelo mau jeito enquanto Olga apenas se esquivava dizendo estar tudo bem. Foram até a sorveteria novamente e ali se conheceram, conversaram, trocaram telefones e se despediram.

Nos dias que seguiram, eles se viam todos os dias, mantinham o que chamamos de uma relação saudável. Até que os contrapontos surgiram e um mar de rosas acabou por mostrar seus espinhos, Olga era a revolução, Fernando queria uma mulher para ficar em casa arrumando as coisas e cuidando dos filhos. Olga nunca pensou em filhos e quiçá arrumar a casa, Olga queria o mundo, queria cumprir seu desejo de trabalhar em uma empreiteira, trabalhar e concorrer com aqueles homens mal-educados que construíam prédios, coçavam o saco na frente de todo mundo e cuspiam no chão. Olga era bem-educada, tinha etiqueta, fazia “coisas de homem”, mas tinha um real nojo da sociedade de seu tempo.

Foi quando em uma festa, desses bailes dançantes, Olga colocou um vestido tão lindo, mas tão lindo que se encaixava perfeitamente em seu corpo, todos os presentes ficaram boquiabertos, Olga estava deslumbrante e Fernando no balcão, pedindo uma bebida, a mesma que caiu quando avistou-a entrando pelo salão. Ele ajeitando seus óculos e fechando a boca, foi se aproximando, eles se olharam mais uma vez e se beijaram. Um beijo que poderia ter durado semanas, meses... Com cuidado eles foram se afastando, mas não tanto a ponto de não sentirem cada um a respiração do outro. Era uma reconciliação, de fato uma verdade entre eles havia, eles não viveriam mais separados. Se casaram 1 mês depois e viveram por anos e anos juntos. Sabe a casa que ela não aceitava arrumar sozinha e os filhos que ela não queria ter, então, cada qual arrumou um emprego e dividam as tarefas, os filhos, tiveram apenas 1, de parto normal, nascia Sarah aos 28/04/87 às 6:30 da manhã.

Eles criaram juntos a pequena Sarah que era uma mistura dos dois, brava e revolucionária como a mãe e desajeitada como o pai. Ninguém fazia realmente conta desse detalhe paterno já que foi em uma trombada que toda essa história se desenrolou. A pequena cresceu e foi estudar em Harvard, justamente onde seu pai havia se formado e também acabou se formando em física aos 25 anos de idade.

A carta? Bem, a carta estava como uma surpresa em cima da mesa da sala de estar, Fernando descrevia que precisava partir, e de certa forma partiu, foi chamado para trabalhar em um projeto científico da NASA e não poderia, por enquanto, levar Olga e Sarah. Fernando era um cara extremamente apaixonado e escrevia várias cartas por semana para Olga, que geralmente retribuía com um sorvete, na mesma sorveteria que eles se conheceram, Olga tinha um estilo diferente, mas sabia como deixar o cara feliz.