sábado, 14 de dezembro de 2019

A Imutabilidade do Tempo

"Aqueles que escapam do inferno
Nunca falam sobre isso
E nada mais os incomoda(...)
Quero dizer, coisas como
Falta de uma refeição, ir para a cadeia
bater seu carro ou mesmo morrer.

Quando você perguntar-lhes
"como as coisas estão indo?"
Eles vão responder: "bem, muito bem.

Uma vez que você foi para o inferno e voltou é o bastante.
É a mais silenciosa celebração conhecida.

Uma vez que você foi para o inferno e voltou
Você não olha para trás quando o chão range.
O sol está no alto a meia-noite

E coisas como os olhos de ratos
Ou um velho pneu em um terreno baldio
Pode torná-lo feliz. (...)
Uma vez que você foi para o inferno e voltou."



_____Charles Bukowski




terça-feira, 26 de novembro de 2019

O coringa nunca existiu


As vezes sobreviver em meio ao inferno é um pouco sacal. O fogo já ardeu o que tinha que arder e a pele por mais que carne viva seja não dói mais. Você, em algum momento, chega a conclusão que é blindado e que já sofreu demais, você olha para a frente e não vê nada mais do que pessoas simples passando nas ruas, você compreende cada passo e está sempre a um passo a frente dos outros, não por mediunidade ou clarividência mas, por simplesmente já ter experimentado talvez as sobras de um futuro desconhecido que hoje não te causa mais emoções. A ideia sobre evolução não é o fato de não ser mais passional ou se emocionar com coisas simples, a ideia sobre a evolução é saber lidar com todas as adversidades que a vida possa te oferecer. Você sorri aos hipócritas, você acena aos usurpadores, você cuida dos bons de coração que ainda precisam caminhar, você acredita nos iguais.

É como um metal, entre o martelo e a bigorna onde metal é o nervo, a carne, o osso. O Martelo é a morte e a Bigorna é a nossa capacidade de aguentar. São elas que seguram e sustentam o seu corpo humano em meio as tentativas da morte personificada nas desilusões. A cada desilusão morremos um pouco mais e a cada expectativa criada, pensada, esperada e morta, a espada se afia e se torna cada vez melhor, hora forjada no ferro, hora forjada no aço, compreendemos que somos compostos de um metal cada vez mais bruto ao passo que nossas ilusões e expectativas são quebradas. São como anjos e demônios que dançam em uma elipse em torno da Via-Láctea.

Evoluir não é ser melhor que alguém, evoluir é sobreviver em meio ao inferno que nós somos por dentro e resistir ao inferno que é a vida aqui fora. Percebe que a felicidade é um lapso e a tristeza é um estado? Passamos mais tempo tentando ser felizes do que sendo felizes de fato e é exatamente este o cerne da evolução, parar de buscar e compreender que não existe recompensa no final, que tudo depende apenas do aqui e do agora. Enquanto ainda o inferno persiste em arder, enquanto ainda o mundo insistir em surrar, enquanto tudo ainda tentar derrubar-nos, sabemos que estamos vivos e sobrevivendo. A força com que nossos passos se chocam ao chão sempre será a mesma força que empurrará a terra para baixo e deixará a nossa marca e o caminho que seguimos, ao mesmo tempo que designa o peso que carregamos nas costas.

Quando em algum momento te tornares sóbrio novamente, quando a ilusão for embora, quando não esperar mais nada dos outros e confiar mais em ti mesmo. A vida te tornará imortal e a morte não será um problema a ser vencido, mas um acalanto a ser presenteado. Os tubos de oxigênio estarão selados naquele momento em que a respiração não for mais necessária. Viver não será mais obrigação. A tua evolução estará ali mesmo, entre os anjos e demônios que dançam em uma elipse em torno da Via-Láctea... ou talvez Andrômeda... uma nebulosa... ou nas proximidades de galáxias que ainda nem foram descobertas.

 “Te vejo neste contexto desde sua partida, como alguém que viaja e não volta, não tive nenhuma opção a não ser aguentar os mundos nas costas, daquele dia em diante tudo o que eu pude fazer foi suportar e entendo que suportarei até o momento em que passarei este fardo a outra pessoa que terá a minha imagem e semelhança, apesar de tuas loucuras, havia uma bondade infinita dentro deste seu coração, apesar da dureza, havia a compreensão, apenas sua teimosia me matava aos poucos assim como te matou também. O veleiro continua buscando o horizonte e nestes 357 anos de existência creio não ter sentido tanta falta de alguém como sinto a sua.” – Baldassari, Dan – Um prólogo sobre a vida e a morte – p. 4



segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O Beatnik e a esperança - Parte 1 - Um manifesto


Um dia frio com Sol, um dia nublado no mormaço. As vezes a gente se sente como se não tivesse pertencimento ao lugar que estamos, como se apenas flutuássemos presos a um barbante tão frágil quanto uma linha de uma teia. A própria vida é algo frágil, assim dizia um grande amigo, isso que vestimos é apenas uma casca, algo passageiro, tão passageiro quanto qualquer nuvem que sobrevoa a nossa casa, o nosso terreno, o chão que pisamos.

As vezes tenho a noção de que não se tem tanta certeza de que pisamos o chão ou se ele nos pisa, afinal, o que nos mantém no local onde nós situamos?

A beira de uma estrada ou a beira da vida?

É como se eu estivesse em um ponto onde não há passado e nem futuro, apenas um chão com um rumo incerto, voltar é uma incerteza tão grande quanto ir para além das faixas contínuas, é compreender o grande deserto que existe no meio fio da vida e da morte, é uma incerteza simples que beira a loucura de estar e não estar, é a grandeza de um sentimento que não cessa no beijo de boa noite ou no despertar de um sonho, é um sono profundo onde se confunde o real do irreal, é uma simples matemática inexata ou uma ciência humana que as mãos trêmulas de fome me leva ao delírio de um lugar que eu nunca estive e talvez nunca esteja.

Um passo de cada vez cria a esperança destruída de algo incerto e incapaz de satisfazer qualquer pensamento momentâneo de que tudo ficará bem. É aquele velho veleiro que que atravessa o largo de Oblast, no gelo, no frio, no nevoeiro... A ideia nunca foi partir, pois, não há um ponto de partida. Entende como é simples e concreto e ao mesmo relativo em dado momento que se pensa devido lugar que pairamos? É a complexa compreensão do tudo e o nada ao mesmo tempo, é o aperto no peito de não haver certeza de nada do que se deve a própria vida, é compreender e acalmar o pranto, pois não há nada a ser feito a não ser continuar caminhando. Um dia talvez isso tudo se concretize em uma soma de variáveis e inconstantes. Hoje falamos sobre o aquecimento global e amanhã de repente nos tornamos os próprios medíocres que se entregam a produção em massa. Não há como pretender o fim sem um começo, não há como jogar-se a própria sorte quando o sentimento de abandono lhe parece confortável, abandonado estás e abandonado ficarás, a mente é um deserto de possibilidades e não haverá nada melhor para hoje do que a caça sendo cozida na fogueira do inferno criado por nós mesmos. Compreende que solução e problema são apenas questões de ponto de vista? Ao se entregar em um momento de pensar na ideia de objeto e observador, quando alteramos o olhar e nos vemos do outro lado as coisas parecem fazer mais sentido, porém, sabemos que mudar o meio em que vivemos pode causar uma situação catastrófica dentro de um ameno paradoxo que contraria os mais esperançosos. A resolução de problemas não deveria ser uma ótica humana. Preocupar-se demais com o futuro nos faz pensar nas piores probabilidades, sempre. Quando a ideia é apenas continuar caminhando. Poupamos dinheiro para que não falte amanhã, poupamos energias para que tenhamos amanhã, poupamos alimentos e até muitas vezes deixamos estragar pois poupamos para o amanhã, deixamos de realizar coisas pois podemos realizar amanhã, uma sociedade pautada sempre no futuro, nunca haverá de ser uma sociedade sadia.  

De volta a estrada, observando os cânions que fazem jus ao sol do entardecer, uns diriam que é belo, outros se preparam para a falta de luz e calor, outros ainda diriam que a Lua fará uma noite clara. Outros ainda compreendem que a Lua iluminando a noite transforma qualquer ser vivo em presa fácil aos coiotes.

Para nós, pouco importa, o presente deve bastar.


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Carta a Vom - n 05 - A discrepância


Meu caro Vom, te escrevo mais esta carta enviando notícias deste planeta inóspito que vos chamam de Terra. Já soube das guerras que ocorreram e ocorrem pelo petróleo? É uma carnificina que banha os países do oriente médio de sangue, alguns dizem que precisam de mais combustível para suprir suas necessidades econômicas mas eu não acredito muito nisso, acho que o real problema é a sede de poder, quando se igualam as coisas os que tem muito não querem ter menos, logo acabam por simplesmente fazer qualquer coisa para se ter os objetivos alcançados e quando digo qualquer coisa pense nas piores atrocidades que conseguir dentro de sua vã filosófica pureza, é difícil para mim também. Ao longo do tempo receio estar ficando cada vez mais velho e ranzinza, Volga está aqui ao meu lado, miando e concordando. É estranho como esse gato compreende o que escrevo, não falo pelo fato da leitura em si, mas, meu cirílico não é dos melhores, ainda mais com as mãos trêmulas. Volga concordou de novo.

Meu amigo, fico pensando as vezes nas questões da relatividade em que 1 ano aqui significa 15 anos aí na estação. Penso em como seria isso para você, meu caro amigo, que quando se foi daqui tínhamos basicamente a mesma idade e agora, tanto tempo depois, está com muito mais do que 300 anos, uns 500 talvez. Ah, meu amigo, que falta que eu sinto das nossas longas conversas, enquanto degustávamos daquele conhaque contrabandeado de Donetsk, sem gelo, sobre o espaço dentro dos conceitos americanizados “Outer Space” e “Inner Universe”.  Volga se cansou da leitura e foi dar sua caminhada noturna, ele sempre faz isso nas noites enluaradas e chuvosas, temo por ele, esse gato sabe ler, mas, sempre volta machucado de alguma briga e Ekaterina passa todas as manhãs limpando os ferimentos.

Hoje me deparei com um assunto um pouco mais sério, meu amigo. Hoje ao acordar percebi o quão triste ando pela casa, as meninas foram embora, o Volga não é boa companhia nem para si mesmo e entrou em depressão desde quando você partiu, deve ser por isso que ele sai todas as noites, era noite quando tudo aconteceu, aquele carro veio e de malas prontas embarcaste, tudo o que eu poderia pedir era que tivesse cuidado e foi o que aconteceu, todo cuidado foi mantido e ainda assim parece as vezes que escrevo para o nada, parece que ao entregar as cartas no balcão do почта (pochta) elas entram em uma espécie de portal que não leva a lugar algum. Isso significa que de certa forma a nossa comunicação não existe, talvez você se sinta abandonado aí, tanto quanto eu me sinto aqui. São dias difíceis meu caro amigo. Hoje o dia não avança e as vezes percebo algo se movimentando no céu enquanto encho meu coração de esperanças de que um dia nos veremos novamente. Eu com meus 90 e tantos e você com quase 1.500. Seria engraçado ou talvez trágico nos encontrarmos frente a própria morte com uma diferença tão gritante assim.

As vezes penso em colocar um fim nisso tudo, as vezes penso que tudo não passa de um sopro, as vezes tenho que me satisfazer com o pão e o leite que oferecem, as vezes um banquete nos anima, as vezes a simplicidade de uma cabana acaba sendo mais acolhedora do que o palácio e as vezes eu entendo bem o que significa o pó dos livros, o que significa as cinzas da lareira, o que significa o veleiro que parece sumir no horizonte perante o lago de Oblast, o que significa a chaminé que expele a fumaça menos densa da lareira apagada apenas em brasas pequenas, o que significa a morte, o momento em que a lâmina da guilhotina cai, em meio ao marasmo da casa vazia.

"As vezes entendo o porquê não gosto muito de lavar louça. Geralmente as soluções da vida vem quando se lava os pratos, as colheres... as facas."

Faber Krystie McDonnadan




domingo, 27 de outubro de 2019

Ninguém

Com um fino trato.
Nos velhos trapos.
Se contradiz a glória.
Persistente na memória.

Graça ao caminhar.
Triste observar.
Leve como planar.
Um trago para acalmar.

O vento sopra.
A poeira se arrasta.
A chuva se afasta.
A água no rosto como copra.

Ninguém expôs o mundo indócil.
Ninguém avisou que machucaria.
Ninguém explicou como seria.
Ninguém disse que seria fácil.

Ninguém.

...E eu ainda estou vivo.



quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Crônicas - Parte 1 - Destino


Certa vez eu estava sentado em um banco de praça, lendo um jornal enquanto observava as pessoas passarem, cinzas, rotineiras e espaçadas. Parecia que o tempo não havia de ser tempo num calculo quântico sobre variáveis de um mundo moderno. Os carros rasgavam as ruas inóspitas a outros seres mundanos, dotados de imperfeições e escarrados ali no meio. Uns desejavam o fim, outros temiam o ser maior de acordo com sua crença. Eram cinzas as pessoas e os pombos que por hora atravessavam o meio fio de suas vidas, passo a passo, hora lentos buscando sustento entre as rachaduras infinitas do asfalto, hora levantando voo em ascensão as arvores que o vento tentava por sua vez derrubar, estas se contorciam cheias de anseios de uma vida inteira no mesmo lugar desde a semente até o fato de se romperem as fibras e ao chão se tornariam mais uma espécie de abrigo, porto seguro, ou, quem sabe, mais um ser vivo decadente em meio ao caos mundano.

Me chamava a atenção a moça que vendia flores, tornando algo paralelamente belo com seu chapéu coco, tcheco, judaico, de abas curtas que ornavam e ornamentavam para com a vestimenta puramente vitoriana. Ela tinha um olhar distante como quem buscava um futuro quase que incerto dentro daquelas vielas que compunham a praça. A cena se desdobrava com aquela garota que passava enquanto os pombos saciavam sua fome com o milho jogado pelos idosos que viviam ali para não deixar de viver. Ela possuía uma característica cor em seus cabelos que de certa forma reluzia uma esperança tal qual quando o povo de África cruzava o Gibraltar em um momento de guerra, a mesma guerra que se lutava por paz regada a sangue e lágrimas, ela cruzava aquela praça lutando em sua guerra pessoal e cotidiana.

Olhando para mim enquanto se aproximava, com um sorriso semicerrado, quase árido, vil e belo ao seu modo. Era compreensível o seu sofrimento que buscava um acalanto, buscava um alívio talvez diário que possivelmente era enredado por um bolero sonolento e apaixonado. Carregava no olhar um semblante de que aquele dia poderia ser o último de sua vida, carregava em si uma cesta com algumas rosas, de papel, que não custavam muito mas que também não serviam de nada para aquelas pessoas cinzas, normais e a solidão das pessoas nessas capitais, parafraseando o saudoso Belchior em seus poemas musicados. Ao olhar para mim percebendo que meu olhar já se perdera das notícias frias daquele jornaleco para encontrar seu olhar em meio a todas aquelas pessoas que apenas atravessavam, errantes, sem dignidade ou orientação.

Foi se chegando cada vez mais perto até sentar-se ao meu lado e oferecer-me uma de suas flores. Dentro de mim eu sabia que talvez até para mim mesmo as flores não tivessem tanto significado ou valor, eu não tinha para quem oferecer um mimo ou agrado, mas, para ela talvez aquelas flores fossem seu pão e a cada passo que ela dava naquela praça era um sinal de esperança que preenchia seu olhar e coração, a esperança de ter o que comer ao invés de dividir o milho jogado ao chão com os pombos. Ela dizia que restavam apenas duas rosas e que iria embora descansar depois de vende-las. Meu jantar daquele dia seriam as rosas de papel embrulhadas em uma folha de jornal velho que escapou da reciclagem. Ofereci até mais do que valiam as rosas e ela aceitou com lágrimas nos olhos quando insisti que ela ficasse com uma de presente. Ela levantou-se, beijando meu rosto com carinho e agora sorrindo, me fez sorrir também ao mesmo tempo que senti minha pele esquentar nas maçãs da face.

As ruas iam ficando cada vez mais escuras, quando atravessando em uma viela parei na esquina ao vê-la entrar em uma casa com a faixada não muito bem cuidada mas com um aspecto belo aos meus olhos, no bar do outro lado da rua uma fadista declamava canções tristes, iniciava então “As time goes by” e eu me sentia em Casablanca, sozinho naquele momento em que o avião parte para Lisboa. Resolvendo adentrar a neblina, parei em frente a entrada na qual ela havia sumido no vapor e pude ouvir alguns gritos e sons de briga, como se alguém estivesse apanhando ou sendo repreendido, ouvi sua voz trêmula pedindo que parasse, pedindo clemência a alguém que talvez não soubesse o significado disso. Ali não me dei conta de mim batendo fervorosamente na porta quando um homem abre e me olhando com ódio questionava minha presença. Ofereci o jornal que estava em meu bolso, causando ao menos 30 segundos de silêncio entre os sons que castigavam tanto a mim quanto a ela, um silêncio ensurdecedor que abraçava todo o contexto enevoado daquela noite fria composta por neblina e sujeira das ruas mal varridas. Antes de bater com a porta em minha cara ainda mandou que eu enfiasse aquele jornal velho em meu orifício.

Ao ouvir um pequeno choro perto da porta, bati com um pouco mais de cuidado e para a minha surpresa ela abriu, estava com o rosto vermelho de choro e de dor, seus olhos abriram devagar e antes que ela pudesse dizer uma palavra eu disse, “Vem comigo, vamos embora, não garanto fortunas mas, garanto uma vida melhor”, ela pediu que eu esperasse na esquina ao lado enquanto ela se preparava e segui suas ordens à risca, foram as 3 horas mais longas de minha vida, o bar fechando, os músicos indo embora dando seus últimos goles da cachaça e eu os últimos tragos no cigarro. Quando vi a porta abrindo enquanto ela saía era como se o Sol nascesse no dia pela 1ª vez.

Deitados em agora nossa cama, enquanto abraçava carinhosamente seu corpo nu, banhado e ferido daquela noite. Nos beijamos uma última vez antes de desejar boa noite e bons sonhos. Talvez naquela noite ela tinha a certeza de que não seria mais necessário vender flores e que poderia se prender aos seus sonhos. Naquela noite nós dois sabíamos o significado daquelas duas flores no vaso da cozinha.



segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Meu caro Fyodor - Pocckocmoc - O diagrama - 01

Fyodor meu amigo, estou com esta carga e preciso escrevê-lo. Mande abraços a todos, tenho saudades da azul Moscou e dos amigos de São Petersburgo e Volgogrado. Cuide de Ivanovna ou então peça ao Volga que faça isso.

De certa forma as questões mundanas rondam sempre entre alguns vértices sejam sociais, capitais, comportamentais, psicológicos... A vida nem sempre nos traz boas lembranças e a partir de um certo ponto em nosso cotidiano começamos a entender que não crescemos mas, somos forjados. Somos seres habitantes de corpos errantes que se moldam por aí. Para compreender o quão inóspito é o lugar em que vivemos precisamos primeiramente compreender o que move a nossa natureza.

Pensar em uma função pedagógica de acordo com o horário local da ISS lado B, ou o que chamamos de Dark Side na agência espacial (Pocckocmoc), é uma tarefa bem complicada já que estou neste momento em minha cama (chamamos de cama mas, é um aparelho que simula a gravidade e estimula o corpo a produzir as químicas que produz durante o sono, de fato, não durmo já tem uns anos) e aqui, próximo a mim, existe uma janela que me permite ver todo o exterior e as vezes eu posso brincar com a imagem das estrelas ou até mesmo desfrutar dos raios de Sol "sem filtro".

As vezes pensando em como preencher meu dia, já que de certa forma parece que me esqueceram aqui e já não mandam notícias tem um tempo. Ainda vejo o planeta Terra como antes, as vezes um pouco mais cinza, as vezes um pouco mais azul mas, o que não me sai da cabeça é em como a humanidade espera obter suas respostas agindo sempre da mesma forma. Sempre temos um mesmo ciclo e ele sempre culmina na própria destruição.

A evolução dos humanos acaba pautada em como vencer a morte e não em como manter a vida, vocês me compreendem?

Abraços meu grande amigo. Avise ao Volga que ainda estou sem oxigênio mas, os vizinhos apareceram e trouxeram sopa, ficamos mais amigos depois que descobriram que eu tenho um estoque de vodka.

"Tudo a seu tempo entre modos, julgamentos e operações. O ar puro das praças da cidade por vezes se torna profano e foge à compreensão até mesmo dos filósofos mais conceituados. Estender a mão nunca será um ato coberto de bondade quando as incertezas pairam nos céus como nuvens negras de uma tempestade. O planeta azul é belo porém, hostil."

Faber Krystie McDonnadan

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O Estado de Sítio de Albert Camus x A Expectativa do Espectador


Como exercício de reflexão, me ponho a experimentar o lado amargo e efêmero das relações contemporâneas de acordo com a visão social (marginal e padrão) em um momento em que a não possuímos mais ídolos a não ser os advindos das religiões por hora, também contemporâneas. Não vos falo sobre religiões “Neo”, mas acuso as idolatrias que ocorrem nos ditos templos nos quais ainda se utilizam de vias arcaicas para a manobras das massas.

Quando falamos sobre Estado de Sítio, de Camus, notoriamente é uma peça política onde se representam as forças e perdas da segunda grande guerra.

 “Uma epidemia qualquer aflige os habitantes de Cádiz, imprevisível e forte. A imprevisão decorre da ausência de um raciocínio político a longo prazo e tem por consequências tanto o despreparo diante do novo quanto o aumento do autoritarismo. O despreparo leva a encobrir o problema: esconde-se o irresolúvel. Elevar o grau do autoritarismo é a velha prática do ataque como melhor defesa. O povo deve esquecer a passagem do cometa e quem insistir em lembrar será punido. A vontade do governador é que nada aconteça em seu governo e que tudo continue bem, como sempre foi. Não se fuja do hábito, pois novos fatos e novas ideias trazem consigo a necessidade de novas explicações. Se as explicações oficiais forem errôneas ou falsas, podem ser corrigidas ou desmentidas, levando daí ao questionamento e provável enfraquecimento da autoridade, ao descrédito e à desobediência.

Revela fundamentos frágeis a autoridade que não admite ser questionada. Quando o governo recorre à agressão, a Força, uma virtude governamental, é confundida com seu vício oposto, a fraqueza. Um povo crédulo, entretanto, facilita muito a permanência deste status. Provavelmente a personificação da Peste sirva, num primeiro momento, para demonstrar o comportamento do Governo diante do cúmulo a que se pode chegar com este quadro de desordem.

Outra derivação do aumento do autoritarismo, segundo quer mostrar Camus, é o cultivo de leis e de formalidades. Muitas, obscuras e contraditórias leis e formalidades escudam o arbítrio, tornando difícil sua prova. Nada agrada mais um funcionário público que um procedimento com começo, meio e fim, esconda o que esconder. No caso de dúvida, recorra-se a quem de direito. O prejudicado muitas vezes prefere resignar-se.”

Hoje em dia não há mais luta, a revolução está calada pelas telas do celular, hoje em dia as redes sociais se tornam diários e a peste do século é a tal tecnologia que assume o papel de herói e vilão ao mesmo tempo. A heroína disfarçada de analgésico no frasco Bayer. Vemos uma sociedade frágil, derrotada, consumista e designada a guerra civil a qualquer momento que o sinal do pacote de dados for retirado. Lutamos pela liberdade de expressão, a mesma que se traveste de libertária enquanto se espalham as fake News em um ritmo alucinante, as industrias bélicas apenas aumentam sua produção e a sociedade curva-se a hipocrisia do comerciais de TV, anunciam a energia nuclear como avanço enquanto armam seus mísseis com ogivas de destruição em massa. A tecnologia nunca será pela evolução, mas, pela destruição.

Dentro de um contexto social, o ser humano é notoriamente cravado de diamantes que podemos chamar de esperança, um ser racional, que exibe a todos as benfeitorias que as mazelas do pensar. Desde a muito tempo se expressa das formas mais variadas, seja pelo teatro, pela dança, pelas pinturas ou por qualquer outro meio historicamente retratado e datado pelos anos em que a evolução era vista de uma forma mais lenta. A partir de um certo ponto, caminhar já não era novidade, escrever passou a ser uma obrigação, falar mais de uma língua uma forma de talvez se despontar em um mundo em que os diamantes simplesmente saíram dos anéis para entrar na indústria de corte e perfuração.

Quando pensamos em expectativas chegamos ao falho conceito de que a gente precisa entender que o que nós damos ao mundo não é sempre o que recebemos de volta. Existe a compreensão desta lei universal do retorno na qual as pessoas se enchem de esperança. Então tudo parte muito mais da nossa expectativa de como gostaríamos de ser tratados, ou seja, nós mesmos somos culpados pelo nosso próprio desgosto, somos reféns de nós mesmos. Entregamos a nossa sorte a pessoas que talvez não dão a mínima para isso, mas entendem que nós mesmos entregamos?

É um ato de pegar algo nosso e dar a alguém, se a pessoa vai segurar isso, se a pessoa vai cuidar disso, se a pessoa vai deixar cair, se a pessoa vai chutar, se a pessoa vai jogar fora, enfim, um deserto imenso de possibilidades que não podemos prever além do que imaginamos em nossas expectativas.

Querendo ou não, a guerra está em nós, a politica está em nós...

“Mais vale uma boa conciliação que uma vitória sobre escombros.”


por Faber Krystie McDonnadan


terça-feira, 23 de julho de 2019

Pular ou não pular, fragmento.

"Este é um fragmento da peça escrita por Dea Loher, Inocência, na qual ela descreve um monologo no alto do prédio dos suicidas."

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Dormir. Para sempre. Para sempre dormir. Meio sinistro. É isso. Está clareando, que é isso! Além disso, você não sabe nada. Mas poderia. Mas você não sabe. Ninguém sabe. Mas poderia. Alguém deve imaginar. Sonho eterno ou o quê? Mas é chato. Não, ninguém está lá para isso. Como que não. Finalmente descanso. Você sempre quer. Já. Mas. Mas não permanente. Mas não para a eternidade, isso ninguém nem pode imaginar. Você não. Alguém deve agora... Eternamente não é tempo nenhum. A primeira vez que você entra se você está na eternidade não percebe isso. Então você já não sabe mais o que é o tempo. Então você já não pensa mais em dias e horas. Então se vem alguém e te pergunta que horas são você só olha e diz é... Já está clareando.
Já está clareando.

Já não tem que ter medo do amanhã por exemplo porque já não tem mais amanhã. A semana que vem não tem. No ano que vem não tem. Tudo é agora tudo é nesse momento. Se não está no momento não existe. Já está clareando.

Já está clareando mas, a memória, a memória ainda existe. Pensa agora. Ontem existe ainda, a semana passada existe ainda ou o ano passado também. Vê, não está tudo aqui agora? O resto existe só na tua cabeça. O resto de antes. Dá na mesma onde e quando é. Se me faz sentir dor. Pra mim dá na mesma se é no joelho ou na orelha, se me faz sentir dor, quero que desapareça. Tudo o de antes que me faça sentir dor tem que desaparecer. Pare agora!

Pare agora!

Nos enfiamos em uma rua sem saída, acho que é assim. Na eternidade não tem ninguém ontem. Quando não tem amanhã não tem ontem. Mas, é lógico, é tudo uno e o mesmo. Sempre agora. Digo eu. Parece meio estranho de certo modo é como quando você vai dormir. Quando isto, é, acho eu quando isto é um dia único, que outro lado para a luz, agora você está suspenso lá em cima de você mesmo, e, olha a careca do doutor. Conheço. O que você diz? Esses não estavam verdadeiramente mortos? Digo eu. O que é que tem que ver isto com a ciência. Isto é sério. Isto está misturado desde a última página.
Já está clareando.

Já está clareando e o que aconteceu com a tua vida anterior? Tem que ser. Você pode se lembrar disso. Você pode se lembrar disso. Se a memória existe você pode se lembrar disso. Pensa nisso. O que foi uma vez você sabe e também não esquece, não. Você deve ter também na eternidade uma ideia de quem você é e de que você é você e não outro. Está clareando.

Está clareando. O que você acha? Então o que é depois não o sabemos com segurança. Ninguém sabe. É um risco. Eu também o vejo assim. Ninguém sabe. Qual é tua opinião. Tem alguém a favor ou alguém contra. Mais risco é mais risco. Ninguém sabe bem. Nós mesmos o achamos fora de caso em todo caso. Já está clareando.

Já está clareando.



domingo, 14 de julho de 2019

Faber e a memória


Fyodor meu amigo, mais uma vez prevejo complicações vindas do espaço. As esferas globais ainda não entenderam que o maior problema do ser humano talvez sejam suas memórias, e, por falar em memórias, como anda Volga? Este gato me deixou demasiadamente chateado quando parti, ele sequer se despediu e em um movimento circular ele apenas se jogou para baixo da cama enquanto aqueles homens da POCKOCMOC vieram me buscar, não tive escolha, meu caro amigo, a não ser segui-los com destino a este lugar pequeno, escuro e artificial.

A vida aqui está complicada e ontem soube que o oxigênio do mês que vem não virá, estamos em racionamento e a parte americana da ISS está escura, eles devem ter entrado em estado de hibernação. Todos eles estão em sono profundo, ou, se minhas mais mórbidas suspeitas estiverem certas, eles foram embora. Ontem junto com a notícia da não renovação dos cilindros também ouvi um barulho estranho enquanto as escotilhas se fechavam travando a passagem no centro, os lados por hora (como se antes fosse diferente) não se falam mais, não há diplomacia e nada que possa salvar as relações, estou com medo, assumo, meu caro Fyodor.

Esta manhã em um lapso de pensamento me perdi nas lembranças que tenho de vocês todos e acabei por perceber que Nádia sumiu dos meus pensamentos. Minha amada Nádia Mhikailovichkova por um instante sumiu do meu ser, não sei se é resultado do racionamento do oxigênio. Mas percebi que não lembro mais dela, é como se sua face não estivesse mais guardada, você me entende? As vezes imagino que isso se resolveria caso eu pudesse tocar sua face novamente, mesmo sabendo ser impossível, mesmo compreendendo que o tempo já passou e que tudo o que vivemos não foi em vão. Eu simplesmente não me lembro do rosto de Nádia, minha amada Nádia. Hoje é um dia triste para mim, as lembranças existem, mas não tenho certeza se ela está em todas elas, é como se um vazio preenchesse o rosto daquela mulher que esteve ao meu lado por tanto tempo.

Fyodor, te peço ajuda, o botão de pervoye maya ou mayday já está ativado tem 5 horas e nada acontece por aqui. Caso eu não volte, diga a Volga que tenho saudades e que pedi que ele fosse um bom gato e mesmo que ele não acate de início espero que ele com o passar do tempo se torne pelo menos mais tranquilo, creio até que ele poderá ler esta carta antes de você então acho que posso pedir “pessoalmente”, Volga, penso em voltar, mas não sei se será possível. Não se irrite ou se sujeite a nenhum tipo de problema, okay? Quero voltar e meu coração está apreensivo.


“Sabemos que existe uma transição entre a razão e a emoção, transição esta que percorre no meio fio entre o amor e o ódio. O desapego é traidor, ao mesmo tempo que a entrega jamais se verá em um porto seguro. Mesmo que as vezes a memória falhe, as emoções trarão de volta os batimentos cardíacos e os sentimentos, estes nunca foram mares navegáveis.”


Faber Krystie McDonnadan




sábado, 8 de junho de 2019

Fiori


As voltas que o mundo dá dentre os astros e átrios numa cúspide estranha recheada de entroncamentos e devaneios numa viagem possivelmente só de ida acusam os temores, teores, teorias (a priori) de forma a se modificar conforme as cítaras se fundem ao som do piano de cauda.

Os motivos pelos quais a vida se arremessa a frente de um processo de evolução, dentre tantos outros processos, a democracia mundana nunca foi a democracia vista na forma crua, grega. O poder se instaura cada vez mais vilipendioso à sociedade que sustenta a metrópole em campos de papel onde soldados marcham em círculos enquanto o Sol detém do brilho excessivo em relação às ruas desertas, sem água, sem motivos e sem sinalizações.

A muito custo adentramos num mar de possibilidades esperando na janela de um quarto escuro e voltar atrás não é uma escolha, nunca foi. O passo a frente é inevitável e a discussão de todo o contexto social é mais que necessária nos dias sombrios vividos e abstratismos à deriva são apenas notas isoladas em uma partitura rasgada, amassada e atirada na lata de lixo com desdém perante as notas chorosas de um violino triste se arriscando por vezes um allegro mas, larghissimo. O problema real não é a janela aberta ou a escuridão mas, o vento frio que sopra nas ruas, que invade o quarto e que aos poucos fragiliza o morador que luta todos os dias, o problema nunca foi a própria guerra mas, a trincheira na qual se protegiam os combatentes.

Notas tais que remetiam a um cortiço, paredes em ruínas, sacadas que se encontram ao centro do quintal em um chafariz que já foi belo e limpo, o chão preto de fuligem, carbonizado com o passar dos anos, os fios dos varais esticados por toda a arquitetura pobre, o corrimão da entrada principal do que antes já havia sido um hospício.

Na atualidade servia de refúgio aos que ali passavam e necessitavam de abrigo, aos que se apresentavam nos quartos como seres errantes tinham o coração aquecido sempre com um prato de sopa, rala, mas quente a ponto de espantar o frio por um tempo. Na sacada numero 9, bem a direita, no terceiro andar, ainda se escutava o piano em tons mais mórbidos na poesia grazinada de um papagaio velho.




terça-feira, 30 de abril de 2019

Tous les jours - 04


Ao passar por aquela ponte, parou no ponto mais alto e, em um lapso pôde sentir o vento em seu rosto e todo o entorno das pessoas que se compadeciam com mais um corpo que se chocava ao solo de forma brusca. Tudo se reconstruía em sua mente e o céu visto era apenas mais um céu coberto de incertezas e tristezas, aqui jaz mais uma mente insana que não suportava o mundo. Para alguns era covarde, para outros era realista, para estes era um sinal de que aos poucos a sociedade matava seus ídolos e idolatrava outros os quais não tinham nada a doar. De certa forma o mundo era aquele mesmo e tudo o que ele poderia fazer era se juntar ao limbo ou arriscar um salto ao infinito desconhecido.

Abrir os olhos com um dos pés apoiado na grade pronto para subir mais um degrau fritou os miolos do sujeito que só estava ali a passeio. As pessoas em volta só observavam sem dizer uma palavra. O clima agradável da noite densa apenas ressaltava a luz dos carros que cruzavam o mesmo caminho. Dali em diante, seguiu seus passos até um bar, onde pediu uma dose de conhaque sem gelo e uns petiscos como tira-gosto. Encontrou alguns amigos, conversou sobre todas as coisas possíveis e ali se sentiu cada vez mais sozinho conforme os amigos iam embora.

Sentado no banco da praça fumando um cigarro de um maço que encontrou ali naquele mesmo banco. Arriscava pensar novamente naquele momento em que observou seu corpo cair, se quebrar como uma onda no casco das embarcações que se embreavam mar adentro. Se sentia num cais, como um navio ancorado pronto para navegar, buscando o mar aberto, pedindo por sua libertação, mas com as pernas imóveis. Seus olhos se moviam e seu corpo banhado em seu próprio sangue insistia em se manter vivo.

Abrindo os olhos novamente enquanto soltava a fumaça pelas narinas, descruzando as pernas e observando ali perto que havia alguém desconhecido. Sem se preocupar com nada, finalizou jogando a bituca logo a sua frente e tomando seus passos pela cidade, caminhava sem rumo, sem ideias ou um ponto final. No termômetro digital visto ao longe marcava 10 graus, estava frio, o conhaque já havia sido consumido e o jeito era acender outro cigarro para se manter aquecido, as luzes dos carros iam ficando cada vez mais escassas devido ao horário, as ruas se iluminavam pelos postes que não exatamente se mantinham acesos, uns piscavam, outros apagavam por longos minutos, o vento batia nas vitrines das lojas e faziam um barulho característico ao soprar nas bocas de lobo.

A cada passo se via mais perto do destino, a cada passo se via mais longe daqueles pensamentos. Entrou em um bar que ainda estava aberto, pediu uma dose do mesmo conhaque sem gelo, sentou-se a uma mesa vaga dentre tantas as outras que estavam também vagas. A musica ambiente mesclava com o barulho das mesas agitadas pela conversa dos frequentadores, era um lounge americano que fazia jus ao bar, tinha cara de ser aqueles PUBs gringos cheios de frescura.

Acordava com alguém cutucando suas costas. Era o garçom, anunciando que a casa estava fechando e que ele deveria acertar a conta e sair. Levantou assustado, procurando sua carteira, retirando uma nota, e colocando em cima da mesa, colocou um cigarro na boca e no primeiro passo para fora do bar notou que estava quase amanhecendo, o Sol não batia em lugar nenhum mas já notava o céu com as cores se modificando, seguiu caminhando até o prédio onde morava no 8º andar, entrou em casa, fez carinho em seu cachorro, enquanto tirava os sapatos, abriu a janela da sala e sentiu a brisa fria da manhã que arrebentava sobre seu rosto como o mesmo mar do cais que arrebentava contra o casco das embarcações.

A vida voltava ao normal, as ruas se enchiam, as mesmas buzinas de todos os dias preenchiam o Lounge e tornava a vista mais turva do que de costume, os aviões cruzando os céus, o barulho dos trens de superfície e todo o entorno da vida na metrópole. Sentando no sofá enquanto acendia mais um cigarro arriscou o salto, em sua mente e mais uma vez acordou com o rosto ensanguentado. Daquele dia em diante, previu seu fim várias e várias vezes e em uma explicação complicada ele dizia que as ramificações se findavam e ele mesmo era dono do próprio destino.


terça-feira, 2 de abril de 2019

Um planalto vazio


Com os joelhos no chão, braços para cima em sinal de suplica, olhos fechados, o sol batia em seu corpo e denunciava ao mesmo tempo o horário das 14 horas em um relógio solar fotografado naquela cena. A composição abstrato-sertaneja indicava as casinhas ao fundo, feitas de barro, com portas sem trinco, rústicas, que mais pareciam gotas daquele orvalho sujo das plantas que vivem perto dos canaviais após uma noite no inferno que queimaria, calmaria, sobreviveria, humildemente, solenemente, capital...

Suplicava pela vida assim como os animais daquele sistema, com todo o cuidado do mundo o fogo queimava a palha, esquentava o lombo, definhava a terra, entornava a guerra, matava o sertão. O planalto sobrevivia assim enquanto a chuva não vinha, e ali naquelas casinhas em que os matagais insistiam em nascer para ser mais tarde arrancados pelo caprino que anseia pelo alimento fuçando na intuição que remexe por toda a psique do ser que ali persevera e perpetua um quadro revisitado por poucos.

A chuva não vinha, tornando seca aquela pintura rupestre sertanejo-abstrata. Os cadáveres emergiam na terra que bufava feito fornalha, por descaso, por descanso, por falta de ensejo ou talvez por falta de contingente humano. De certa forma uns diziam que preferiam amar feito os bichos, mais honestamente e menos sazonal. Tantas as vezes que tudo se tornava insular o próprio muro também emergia de forma a que ninguém visse tudo aquilo que se passava ali. Os pés queimavam, não sabendo se a terra pisava no boi ou se o boi pisava a terra caminhando, magro, quase esquálido, um cálice a poucos metros de si com água fresca. Ao observar a cena o mesmo se aproximava daquele que seria seu suspiro de vida ante a situação do semiárido.

Ao longe um riso de crianças, barrigas enormes, felizes, tomadas pela fome e pela sede. Mas sorriam, pois, encontravam graça naquele lugar inóspito ou talvez porque não entendiam muito bem que se aproximavam cada vez mais do encontro divino com o além vida. Ah, coração, dai a festa em nós, assim como as cores nos tratam como reles mortais. Diga depressa quais seriam suas paixões senão a compreensão de um quadro tão fiel ao olhar dos que ali passam fome. O mundo é pequeno e o tempo é uma invenção, um sopro e todas as plantas do jardim se foram com o sentimento de derrota pela oração por um dia de chuva, pela esperança de um dia sem sofrimento, pela idealização de um prato de comida, pela perseverança da própria sobrevivência.

Mas, de todos os lados havia um único medo, o medo de ir embora. Talvez um mundo sem dúvidas seria um mundo sem respostas.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Mulheres Selvagens


"Como em um instante em que as estrelas se assimilavam aos teus olhos brilhantes e como era bom o toque das suas mãos em minha cabeça quando você acariciava brutalmente meus cabelos. Você olhava para mim com um semblante tão puro que dava gosto de tentar compreender todo o universo que girava em torno de sua mente, você era sagaz, esperta, sabe? Teu sorriso ornava com os seus caninos, eu diria, democraticamente saltados, parecia uma eterna junção entre o egocentrismo de Nietzsche e a crueldade de Machiavelli, era assim que eu gostaria de descrever a sua beleza entre todas aquelas estrelas que eu via em teus olhos, Olga."

Este seria um fragmento de uma carta deixada por Fernando horas antes de partir. Fernando era um rapaz adorável, bom filho, aquele que sempre tirava notas altas na escola e se formou com louvores pelos professores em Harvard. Ele era um cara que adorava física e tinha como plano de vida um dia ser como Albert Einstein. Era um garoto brilhante com inúmeros prêmios na escola, universidade, enfim, ele tinha tudo na vida. Foi no inverno de 78 que as coisas começavam a se tornar um pouco turvas.

De certa forma, Olga provava para si mesma a necessidade de sobreviver no inferno, estava começando a universidade em uma época um tanto quanto complicada para as mulheres, ainda mais as ditas mulheres livres. Olga tinha um semblante jovial, em suas vestes ela carregava a revolução e em seu peito, como um amuleto, levava o anel que tinha ganho de seu avô antes do mesmo partir dessa para a melhor. O avô era a única pessoa que ela tinha na vida, a criou e a criou sem medo do mundo, todos diziam “Aroldo, você criou um homem”.

Ela não entendia, era pequena demais para entender o por quê de alguém falar assim, mas se perguntava o por quê ela não deveria fazer o que ela fazia. Olga sabia atirar, subia em árvores, cozinhava, caçava, montava barracas e enfim, adorava trabalhos manuais pesados, Olga tinha o sonho de comprar aqueles tratores de demolição, aqueles que derrubavam prédios com duas ou três pancadas. Olga tinha um tom meio excêntrico, gostava de ler coisas estranhas como “As enciclopédias sobre os sapos venenosos de Madagascar” ou então “O manifesto comunista”, e claro, adorava obras filosóficas de Schopenhauer, Tomas More e afins.

As coisas pareciam meio complexas naquele verão, fazia calor enquanto Olga comprava um sorvete a alguns passos de Fernando, que parado na banca procurava aqueles quadrinhos do Pateta, ele adorava o mundo Walt Disney. Pato Donald era seu preferido, mas naquele momento ele queria ler algo do Pateta, as ruas estavam completamente iluminadas pelo sol que batia em cada pedaço sem cobertura, quando ele deu um passo para trás e encostou em Olga que desviando sua rota deu de cara com o poste. A casquinha foi direto em sua camiseta e Fernando emudeceu. Os dois se olharam, Olga estava com muita raiva, mas também ficou muda, eles apenas se olhavam enquanto o dono da banca arrumava os jornais se prestar atenção em nada. As buzinas dos carros foram sumindo, o vento batia quase que imperceptivelmente, o sol não incomodava mais... momento quebrado por Fernando que se desculpou pelo mau jeito enquanto Olga apenas se esquivava dizendo estar tudo bem. Foram até a sorveteria novamente e ali se conheceram, conversaram, trocaram telefones e se despediram.

Nos dias que seguiram, eles se viam todos os dias, mantinham o que chamamos de uma relação saudável. Até que os contrapontos surgiram e um mar de rosas acabou por mostrar seus espinhos, Olga era a revolução, Fernando queria uma mulher para ficar em casa arrumando as coisas e cuidando dos filhos. Olga nunca pensou em filhos e quiçá arrumar a casa, Olga queria o mundo, queria cumprir seu desejo de trabalhar em uma empreiteira, trabalhar e concorrer com aqueles homens mal-educados que construíam prédios, coçavam o saco na frente de todo mundo e cuspiam no chão. Olga era bem-educada, tinha etiqueta, fazia “coisas de homem”, mas tinha um real nojo da sociedade de seu tempo.

Foi quando em uma festa, desses bailes dançantes, Olga colocou um vestido tão lindo, mas tão lindo que se encaixava perfeitamente em seu corpo, todos os presentes ficaram boquiabertos, Olga estava deslumbrante e Fernando no balcão, pedindo uma bebida, a mesma que caiu quando avistou-a entrando pelo salão. Ele ajeitando seus óculos e fechando a boca, foi se aproximando, eles se olharam mais uma vez e se beijaram. Um beijo que poderia ter durado semanas, meses... Com cuidado eles foram se afastando, mas não tanto a ponto de não sentirem cada um a respiração do outro. Era uma reconciliação, de fato uma verdade entre eles havia, eles não viveriam mais separados. Se casaram 1 mês depois e viveram por anos e anos juntos. Sabe a casa que ela não aceitava arrumar sozinha e os filhos que ela não queria ter, então, cada qual arrumou um emprego e dividam as tarefas, os filhos, tiveram apenas 1, de parto normal, nascia Sarah aos 28/04/87 às 6:30 da manhã.

Eles criaram juntos a pequena Sarah que era uma mistura dos dois, brava e revolucionária como a mãe e desajeitada como o pai. Ninguém fazia realmente conta desse detalhe paterno já que foi em uma trombada que toda essa história se desenrolou. A pequena cresceu e foi estudar em Harvard, justamente onde seu pai havia se formado e também acabou se formando em física aos 25 anos de idade.

A carta? Bem, a carta estava como uma surpresa em cima da mesa da sala de estar, Fernando descrevia que precisava partir, e de certa forma partiu, foi chamado para trabalhar em um projeto científico da NASA e não poderia, por enquanto, levar Olga e Sarah. Fernando era um cara extremamente apaixonado e escrevia várias cartas por semana para Olga, que geralmente retribuía com um sorvete, na mesma sorveteria que eles se conheceram, Olga tinha um estilo diferente, mas sabia como deixar o cara feliz.



segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Devaneios


É sabido que quanto mais conhecemos da história, mais deprimidos ficamos após confrontar os ignorantes repetindo o mesmo ciclo. A história serve não apenas para nos deleitarmos sob as pinturas, esculturas e restos mortais, ela serve como uma questão evolutiva para que tenhamos um norte ao criar, olhar e agir, assim como entender as variadas formas de chegar a algum lugar e também de como não proceder em outros casos.

O que vivemos hoje é nada mais do que uma mescla entre a necessidade de evolução e a incapacidade de compreender os ecos do passado. Entramos é claro em várias outras vertentes como o descaso de governos perante as nações que realmente necessitam de ajuda. A ideia parece absurda, mas ao mesmo tempo não podemos deixar de compreender as perspectivas entre os continentes e ainda chegando ao consenso de que as nações se tornam insulares quando se é falado algo sobre doação.

Empresas multinacionais pedindo a ajuda da população para levar água potável para África e Sudeste asiático enquanto outras produzem o suficiente para adquirir estes países. O problema não está no quanto isso custa, mas na vontade de ajudar as pessoas mais necessitadas levando o custo disso em consideração, como se uma vida tivesse mais valor que a outra.

Não é hora de encontrar culpados, mas de compreender que para que todo esse processo evolutivo, foi necessário que os povos entrassem em conflitos, foi necessário que se escravizassem os índios, negros e todos os que não tinham como se defender do “homem branco”. Muito sangue não-europeu escorreu desde a expansão marítima, muita coisa aconteceu e a história que ouvimos, sabemos que é a história dita pelo agressor, pelo europeu que se lançou ao mar, porém, ainda assim temos o dever de amenizar tudo isso da melhor forma possível, entendam bem, amenizar, já que os povos conquistados que ainda não foram extintos ainda vivem com os traumas do passado. É hora de deixar a visão do colonizador de lado, parar de olhar para os outros com diferença. É hora de compreender que o mundo é um só e ninguém que vive nele deve passar fome.

Massacres na Ásia menor e ilhas do sudeste asiático, exploração e mortes em África, população indígena extinta na América do Sul, Central e do Norte. Muitas as coisas que poderíamos aprender e evoluir de formas totalmente diferentes, quem sabe até espirituais compreendendo o crescimento em tribos e sabemos que a eletricidade seria inevitável um dia.

Ter esperança que a humanidade se torne mais humana, eu sei, é como encontrar agulha em um palheiro, é uma ideia difícil de se administrar. Dizer que a mudança começa de dentro pra fora também é uma falácia, já que enquanto as emissoras de TV fazem programas de arrecadação uma vez ao ano e (talvez) repassem o montante as casas assistenciais, compreendemos que este seria uma raspa, uma fagulha, um cisco, um grão... da enorme ponta do iceberg. Você pode ajudar? Sim, mas, você precisa entender que as palavras são belas e audíveis como música quando entramos em um altruísmo que as grandes corporações não têm, nunca terão e jamais tiveram.

Ganha-se dinheiro com os miseráveis, ganha-se nos testes de remédios, ganha-se na propaganda para arrecadação, ganha-se no olhar bondoso da população que se compadece com as imagens, ganha-se com tudo o que é mostrado, criando comoção mundial, na tela de uma TV, na tela de um Smartphone, nos outdoors eletrônicos nos grandes centros comerciais. A história não se repete desta vez, a involução sim. Alguns são reféns, outros conhecem um pouco mais, porém estamos todos no mesmo sistema, e alguns são tão dependentes dele que lutarão até a morte para mantê-lo enquanto nós tentamos abrir os olhos para um mundo sem desigualdade, fome, morte e dor.

No fim de tudo.

Um pavão belo, brilhante, sedutor e mortal.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Tous les jours - 03


Certo dia Antunes e Léo conversavam como quem não quer nada, aqueles papos de bar em que se programam viagens, falam sobre sagas épicas passadas na vida, futebol, mulheres e etc. Bem naquele momento que o Antunes falava sobre uma transa que teve com sua esposa quando ainda nem namoravam. Antunes lembrava bem daquele dia como o dia em que eles “fizeram amor” ao luar chapados de cogumelo, aquela devia ser uma lembrança e tanto, concluía Léo com aquele ar de deslumbre.

Já o Léo tadinho, não tinha muito jeito com as mulheres, ninguém sabia explicar, ele travava, mas gostava muito de flertar, conversar, era um cara legal que encontraria algum dia alguém pra ele. Isso era o que Antunes sempre dizia, não que o Léo quisesse namorar, se casar, ter filhos... ele mesmo, nunca foi enfático neste assunto, era mais fácil encontrar Léo debruçado no balcão do boteco do que em uma baladinha “playba”.

Juca estava ali também, mas estava quieto, e ambos notaram. Ao mesmo tempo ele estava olhando para o horizonte, dando um gole em sua cerveja e um trago forte no cigarro, era como se ele estivesse em um transe ou buscando alguma coisa num emaranhado de pensamentos. Antunes que estava mais familiarizado na mesa, o cutucou, queria explicações sobre aquela epifania que ele entrara, Juca desconversou, mas Antunes sabia bem que algo ali estava bem complicado de sair, como se estivesse entalado na goela, nem a cerveja gelada e nem o cigarro davam conta de descer aquilo.

Papo vai, papo vem, mesas sendo guardadas, garçons indo embora, o bar fechando, os 3 levantaram e foram para o balcão tomar a saideira, o Léo tomou o caminho do banheiro para mijar enquanto ambos pediam 3 doses de whisky, para fechar a conta. Encostados no balcão, Antunes admirava e ainda provava o cheiro do whisky e o assemelhava com a madeira do balcão, o carvalho, degustava aquele trago no scotch e outro no Chester, o cinzeiro de companhia no lugar do Léo que não voltava, Juca deu a primeira letra e Antunes completou quase que compreendendo o que ocorrera naquela hora, na mesa, em que Juca estava quase estático.

- Sabe Antunes, eu não queria muito falar isso perto do Léo, ele fica sempre constrangido quando surgem esses papos na mesa e tal, eu sei que você não liga, mas o cara fica boladão.

- Você acha que ele é viado? Não que seja da minha conta, o cara é meu irmão, ele que faz o que quiser da vida dele.

- Não, ele só é timidão mesmo, vai achar uma mina pra ele.

- Saquei, mas então, qual o peso meu caro, o que acontece?

- Ah, você ali falando sobre fazer amor, eu ainda estou com uma leve ressaca de ontem.

- Ontem não foi quando você saiu com a aquela moça, amiga da irmã do Léo?

- Sim, foi.

- E tá de ressaca? Cara, uma gata daquelas!

- É. – Juca foi ficando murcho –

- Qual foi porra! Conta logo! O Léo não volta mais mesmo, vou pegar o Whisky dele – derramando um pouco em cada copo –

- Cara, aquilo foi impressionante. Nós fomos pra minha casa, lá eu servi uma dose de whisky para cada, mas a gente nem conversou muito, foi bem direto ao quarto cada um tirando a roupa um do outro e se pegando pelo corredor. Nós transamos e depois ficamos horas deitados, nus na minha cama sem nenhuma pretensão, a gente se olhava, sorria, se beijava e voltava a se abraçar, essas coisas fofinhas que as pessoas fazem quando estão ali curtindo o momento.

- Mas o que tem de errado nisso, eu pensei que tinha acontecido algo bem complicado, sei lá, ela enfiou o dedo no seu cu? – Antunes concluía rindo junto com o barman –

- Não porra, a cena se desenrolou a gente deu mais uns beijos e eu fui mijar. O banheiro meio que dá de cara com o meu quarto e mijei de porta aberta mesmo, sem nenhum pudor. Dei descarga e virei pro quarto, quando vejo aquela mulher sentada na pontinha da cama, nua, pernas cruzadas eu cheguei perto me ajoelhei, abri as pernas dela e a chupei como nunca chupei outra mulher, ela acendendo um cigarro com o copo de whisky na mão, deu um trago de olhos fechados, soltou a fumaça enquanto gozava, abrindo os olhos, me olhou, deu um bico no whisky e continuou me olhando com uma cara de satisfeita, feliz, sabe? Ela levantou, me beijou, colocou o cigarro na minha boca, entregou o copo quase vazio e disse bem baixinho, que bunda linda você tem. Entrando no banheiro, fechou a porta e tudo o que eu pude fazer foi abrir a janela do quarto e observar aquele céu da manhã enquanto dava o ultimo gole no copo e apagava o cigarro no cinzeiro.

Ambos se despediram procurando o Léo que não estava mais no banheiro e em nenhum lugar daquele estabelecimento, segundo o Juca que acabou indo procura-lo. Acabaram indo embora, o barman guardava os copos, limpava os cinzeiros e o Léo, bem, o Léo estava nos braços da garçonete, nos fundos.