"Como em um instante em que as estrelas se assimilavam aos
teus olhos brilhantes e como era bom o toque das suas mãos em minha cabeça
quando você acariciava brutalmente meus cabelos. Você olhava para mim com um
semblante tão puro que dava gosto de tentar compreender todo o universo que
girava em torno de sua mente, você era sagaz, esperta, sabe? Teu sorriso ornava
com os seus caninos, eu diria, democraticamente saltados, parecia uma eterna
junção entre o egocentrismo de Nietzsche e a crueldade de Machiavelli, era
assim que eu gostaria de descrever a sua beleza entre todas aquelas estrelas
que eu via em teus olhos, Olga."
Este seria um fragmento de uma carta deixada por Fernando
horas antes de partir. Fernando era um rapaz adorável, bom filho, aquele que
sempre tirava notas altas na escola e se formou com louvores pelos professores
em Harvard. Ele era um cara que adorava física e tinha como plano de vida um
dia ser como Albert Einstein. Era um garoto brilhante com inúmeros prêmios na
escola, universidade, enfim, ele tinha tudo na vida. Foi no inverno de 78 que
as coisas começavam a se tornar um pouco turvas.
De certa forma, Olga provava para si mesma a necessidade de
sobreviver no inferno, estava começando a universidade em uma época um tanto
quanto complicada para as mulheres, ainda mais as ditas mulheres livres. Olga
tinha um semblante jovial, em suas vestes ela carregava a revolução e em seu
peito, como um amuleto, levava o anel que tinha ganho de seu avô antes do mesmo
partir dessa para a melhor. O avô era a única pessoa que ela tinha na vida, a
criou e a criou sem medo do mundo, todos diziam “Aroldo, você criou um homem”.
Ela não entendia, era pequena demais para entender o por quê
de alguém falar assim, mas se perguntava o por quê ela não deveria fazer o que
ela fazia. Olga sabia atirar, subia em árvores, cozinhava, caçava, montava
barracas e enfim, adorava trabalhos manuais pesados, Olga tinha o sonho de
comprar aqueles tratores de demolição, aqueles que derrubavam prédios com duas
ou três pancadas. Olga tinha um tom meio excêntrico, gostava de ler coisas
estranhas como “As enciclopédias sobre os sapos venenosos de Madagascar” ou
então “O manifesto comunista”, e claro, adorava obras filosóficas de Schopenhauer,
Tomas More e afins.
As coisas pareciam meio complexas naquele verão, fazia calor
enquanto Olga comprava um sorvete a alguns passos de Fernando, que parado na
banca procurava aqueles quadrinhos do Pateta, ele adorava o mundo Walt Disney.
Pato Donald era seu preferido, mas naquele momento ele queria ler algo do
Pateta, as ruas estavam completamente iluminadas pelo sol que batia em cada
pedaço sem cobertura, quando ele deu um passo para trás e encostou em Olga que
desviando sua rota deu de cara com o poste. A casquinha foi direto em sua camiseta
e Fernando emudeceu. Os dois se olharam, Olga estava com muita raiva, mas também
ficou muda, eles apenas se olhavam enquanto o dono da banca arrumava os jornais
se prestar atenção em nada. As buzinas dos carros foram sumindo, o vento batia
quase que imperceptivelmente, o sol não incomodava mais... momento quebrado por
Fernando que se desculpou pelo mau jeito enquanto Olga apenas se esquivava
dizendo estar tudo bem. Foram até a sorveteria novamente e ali se conheceram,
conversaram, trocaram telefones e se despediram.
Nos dias que seguiram, eles se viam todos os dias, mantinham
o que chamamos de uma relação saudável. Até que os contrapontos surgiram e um
mar de rosas acabou por mostrar seus espinhos, Olga era a revolução, Fernando
queria uma mulher para ficar em casa arrumando as coisas e cuidando dos filhos.
Olga nunca pensou em filhos e quiçá arrumar a casa, Olga queria o mundo, queria
cumprir seu desejo de trabalhar em uma empreiteira, trabalhar e concorrer com
aqueles homens mal-educados que construíam prédios, coçavam o saco na frente de
todo mundo e cuspiam no chão. Olga era bem-educada, tinha etiqueta, fazia “coisas
de homem”, mas tinha um real nojo da sociedade de seu tempo.
Foi quando em uma festa, desses bailes dançantes, Olga colocou
um vestido tão lindo, mas tão lindo que se encaixava perfeitamente em seu corpo,
todos os presentes ficaram boquiabertos, Olga estava deslumbrante e Fernando no
balcão, pedindo uma bebida, a mesma que caiu quando avistou-a entrando pelo
salão. Ele ajeitando seus óculos e fechando a boca, foi se aproximando, eles se
olharam mais uma vez e se beijaram. Um beijo que poderia ter durado semanas,
meses... Com cuidado eles foram se afastando, mas não tanto a ponto de não
sentirem cada um a respiração do outro. Era uma reconciliação, de fato uma
verdade entre eles havia, eles não viveriam mais separados. Se casaram 1 mês
depois e viveram por anos e anos juntos. Sabe a casa que ela não aceitava
arrumar sozinha e os filhos que ela não queria ter, então, cada qual arrumou um
emprego e dividam as tarefas, os filhos, tiveram apenas 1, de parto normal,
nascia Sarah aos 28/04/87 às 6:30 da manhã.
Eles criaram juntos a pequena Sarah que era uma mistura dos
dois, brava e revolucionária como a mãe e desajeitada como o pai. Ninguém fazia
realmente conta desse detalhe paterno já que foi em uma trombada que toda essa
história se desenrolou. A pequena cresceu e foi estudar em Harvard, justamente
onde seu pai havia se formado e também acabou se formando em física aos 25 anos
de idade.
A carta? Bem, a carta estava como uma surpresa em cima da
mesa da sala de estar, Fernando descrevia que precisava partir, e de certa
forma partiu, foi chamado para trabalhar em um projeto científico da NASA e não
poderia, por enquanto, levar Olga e Sarah. Fernando era um cara extremamente
apaixonado e escrevia várias cartas por semana para Olga, que geralmente retribuía
com um sorvete, na mesma sorveteria que eles se conheceram, Olga tinha um
estilo diferente, mas sabia como deixar o cara feliz.