quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Crônicas - Parte 1 - Destino


Certa vez eu estava sentado em um banco de praça, lendo um jornal enquanto observava as pessoas passarem, cinzas, rotineiras e espaçadas. Parecia que o tempo não havia de ser tempo num calculo quântico sobre variáveis de um mundo moderno. Os carros rasgavam as ruas inóspitas a outros seres mundanos, dotados de imperfeições e escarrados ali no meio. Uns desejavam o fim, outros temiam o ser maior de acordo com sua crença. Eram cinzas as pessoas e os pombos que por hora atravessavam o meio fio de suas vidas, passo a passo, hora lentos buscando sustento entre as rachaduras infinitas do asfalto, hora levantando voo em ascensão as arvores que o vento tentava por sua vez derrubar, estas se contorciam cheias de anseios de uma vida inteira no mesmo lugar desde a semente até o fato de se romperem as fibras e ao chão se tornariam mais uma espécie de abrigo, porto seguro, ou, quem sabe, mais um ser vivo decadente em meio ao caos mundano.

Me chamava a atenção a moça que vendia flores, tornando algo paralelamente belo com seu chapéu coco, tcheco, judaico, de abas curtas que ornavam e ornamentavam para com a vestimenta puramente vitoriana. Ela tinha um olhar distante como quem buscava um futuro quase que incerto dentro daquelas vielas que compunham a praça. A cena se desdobrava com aquela garota que passava enquanto os pombos saciavam sua fome com o milho jogado pelos idosos que viviam ali para não deixar de viver. Ela possuía uma característica cor em seus cabelos que de certa forma reluzia uma esperança tal qual quando o povo de África cruzava o Gibraltar em um momento de guerra, a mesma guerra que se lutava por paz regada a sangue e lágrimas, ela cruzava aquela praça lutando em sua guerra pessoal e cotidiana.

Olhando para mim enquanto se aproximava, com um sorriso semicerrado, quase árido, vil e belo ao seu modo. Era compreensível o seu sofrimento que buscava um acalanto, buscava um alívio talvez diário que possivelmente era enredado por um bolero sonolento e apaixonado. Carregava no olhar um semblante de que aquele dia poderia ser o último de sua vida, carregava em si uma cesta com algumas rosas, de papel, que não custavam muito mas que também não serviam de nada para aquelas pessoas cinzas, normais e a solidão das pessoas nessas capitais, parafraseando o saudoso Belchior em seus poemas musicados. Ao olhar para mim percebendo que meu olhar já se perdera das notícias frias daquele jornaleco para encontrar seu olhar em meio a todas aquelas pessoas que apenas atravessavam, errantes, sem dignidade ou orientação.

Foi se chegando cada vez mais perto até sentar-se ao meu lado e oferecer-me uma de suas flores. Dentro de mim eu sabia que talvez até para mim mesmo as flores não tivessem tanto significado ou valor, eu não tinha para quem oferecer um mimo ou agrado, mas, para ela talvez aquelas flores fossem seu pão e a cada passo que ela dava naquela praça era um sinal de esperança que preenchia seu olhar e coração, a esperança de ter o que comer ao invés de dividir o milho jogado ao chão com os pombos. Ela dizia que restavam apenas duas rosas e que iria embora descansar depois de vende-las. Meu jantar daquele dia seriam as rosas de papel embrulhadas em uma folha de jornal velho que escapou da reciclagem. Ofereci até mais do que valiam as rosas e ela aceitou com lágrimas nos olhos quando insisti que ela ficasse com uma de presente. Ela levantou-se, beijando meu rosto com carinho e agora sorrindo, me fez sorrir também ao mesmo tempo que senti minha pele esquentar nas maçãs da face.

As ruas iam ficando cada vez mais escuras, quando atravessando em uma viela parei na esquina ao vê-la entrar em uma casa com a faixada não muito bem cuidada mas com um aspecto belo aos meus olhos, no bar do outro lado da rua uma fadista declamava canções tristes, iniciava então “As time goes by” e eu me sentia em Casablanca, sozinho naquele momento em que o avião parte para Lisboa. Resolvendo adentrar a neblina, parei em frente a entrada na qual ela havia sumido no vapor e pude ouvir alguns gritos e sons de briga, como se alguém estivesse apanhando ou sendo repreendido, ouvi sua voz trêmula pedindo que parasse, pedindo clemência a alguém que talvez não soubesse o significado disso. Ali não me dei conta de mim batendo fervorosamente na porta quando um homem abre e me olhando com ódio questionava minha presença. Ofereci o jornal que estava em meu bolso, causando ao menos 30 segundos de silêncio entre os sons que castigavam tanto a mim quanto a ela, um silêncio ensurdecedor que abraçava todo o contexto enevoado daquela noite fria composta por neblina e sujeira das ruas mal varridas. Antes de bater com a porta em minha cara ainda mandou que eu enfiasse aquele jornal velho em meu orifício.

Ao ouvir um pequeno choro perto da porta, bati com um pouco mais de cuidado e para a minha surpresa ela abriu, estava com o rosto vermelho de choro e de dor, seus olhos abriram devagar e antes que ela pudesse dizer uma palavra eu disse, “Vem comigo, vamos embora, não garanto fortunas mas, garanto uma vida melhor”, ela pediu que eu esperasse na esquina ao lado enquanto ela se preparava e segui suas ordens à risca, foram as 3 horas mais longas de minha vida, o bar fechando, os músicos indo embora dando seus últimos goles da cachaça e eu os últimos tragos no cigarro. Quando vi a porta abrindo enquanto ela saía era como se o Sol nascesse no dia pela 1ª vez.

Deitados em agora nossa cama, enquanto abraçava carinhosamente seu corpo nu, banhado e ferido daquela noite. Nos beijamos uma última vez antes de desejar boa noite e bons sonhos. Talvez naquela noite ela tinha a certeza de que não seria mais necessário vender flores e que poderia se prender aos seus sonhos. Naquela noite nós dois sabíamos o significado daquelas duas flores no vaso da cozinha.