terça-feira, 26 de novembro de 2019

O coringa nunca existiu


As vezes sobreviver em meio ao inferno é um pouco sacal. O fogo já ardeu o que tinha que arder e a pele por mais que carne viva seja não dói mais. Você, em algum momento, chega a conclusão que é blindado e que já sofreu demais, você olha para a frente e não vê nada mais do que pessoas simples passando nas ruas, você compreende cada passo e está sempre a um passo a frente dos outros, não por mediunidade ou clarividência mas, por simplesmente já ter experimentado talvez as sobras de um futuro desconhecido que hoje não te causa mais emoções. A ideia sobre evolução não é o fato de não ser mais passional ou se emocionar com coisas simples, a ideia sobre a evolução é saber lidar com todas as adversidades que a vida possa te oferecer. Você sorri aos hipócritas, você acena aos usurpadores, você cuida dos bons de coração que ainda precisam caminhar, você acredita nos iguais.

É como um metal, entre o martelo e a bigorna onde metal é o nervo, a carne, o osso. O Martelo é a morte e a Bigorna é a nossa capacidade de aguentar. São elas que seguram e sustentam o seu corpo humano em meio as tentativas da morte personificada nas desilusões. A cada desilusão morremos um pouco mais e a cada expectativa criada, pensada, esperada e morta, a espada se afia e se torna cada vez melhor, hora forjada no ferro, hora forjada no aço, compreendemos que somos compostos de um metal cada vez mais bruto ao passo que nossas ilusões e expectativas são quebradas. São como anjos e demônios que dançam em uma elipse em torno da Via-Láctea.

Evoluir não é ser melhor que alguém, evoluir é sobreviver em meio ao inferno que nós somos por dentro e resistir ao inferno que é a vida aqui fora. Percebe que a felicidade é um lapso e a tristeza é um estado? Passamos mais tempo tentando ser felizes do que sendo felizes de fato e é exatamente este o cerne da evolução, parar de buscar e compreender que não existe recompensa no final, que tudo depende apenas do aqui e do agora. Enquanto ainda o inferno persiste em arder, enquanto ainda o mundo insistir em surrar, enquanto tudo ainda tentar derrubar-nos, sabemos que estamos vivos e sobrevivendo. A força com que nossos passos se chocam ao chão sempre será a mesma força que empurrará a terra para baixo e deixará a nossa marca e o caminho que seguimos, ao mesmo tempo que designa o peso que carregamos nas costas.

Quando em algum momento te tornares sóbrio novamente, quando a ilusão for embora, quando não esperar mais nada dos outros e confiar mais em ti mesmo. A vida te tornará imortal e a morte não será um problema a ser vencido, mas um acalanto a ser presenteado. Os tubos de oxigênio estarão selados naquele momento em que a respiração não for mais necessária. Viver não será mais obrigação. A tua evolução estará ali mesmo, entre os anjos e demônios que dançam em uma elipse em torno da Via-Láctea... ou talvez Andrômeda... uma nebulosa... ou nas proximidades de galáxias que ainda nem foram descobertas.

 “Te vejo neste contexto desde sua partida, como alguém que viaja e não volta, não tive nenhuma opção a não ser aguentar os mundos nas costas, daquele dia em diante tudo o que eu pude fazer foi suportar e entendo que suportarei até o momento em que passarei este fardo a outra pessoa que terá a minha imagem e semelhança, apesar de tuas loucuras, havia uma bondade infinita dentro deste seu coração, apesar da dureza, havia a compreensão, apenas sua teimosia me matava aos poucos assim como te matou também. O veleiro continua buscando o horizonte e nestes 357 anos de existência creio não ter sentido tanta falta de alguém como sinto a sua.” – Baldassari, Dan – Um prólogo sobre a vida e a morte – p. 4



segunda-feira, 11 de novembro de 2019

O Beatnik e a esperança - Parte 1 - Um manifesto


Um dia frio com Sol, um dia nublado no mormaço. As vezes a gente se sente como se não tivesse pertencimento ao lugar que estamos, como se apenas flutuássemos presos a um barbante tão frágil quanto uma linha de uma teia. A própria vida é algo frágil, assim dizia um grande amigo, isso que vestimos é apenas uma casca, algo passageiro, tão passageiro quanto qualquer nuvem que sobrevoa a nossa casa, o nosso terreno, o chão que pisamos.

As vezes tenho a noção de que não se tem tanta certeza de que pisamos o chão ou se ele nos pisa, afinal, o que nos mantém no local onde nós situamos?

A beira de uma estrada ou a beira da vida?

É como se eu estivesse em um ponto onde não há passado e nem futuro, apenas um chão com um rumo incerto, voltar é uma incerteza tão grande quanto ir para além das faixas contínuas, é compreender o grande deserto que existe no meio fio da vida e da morte, é uma incerteza simples que beira a loucura de estar e não estar, é a grandeza de um sentimento que não cessa no beijo de boa noite ou no despertar de um sonho, é um sono profundo onde se confunde o real do irreal, é uma simples matemática inexata ou uma ciência humana que as mãos trêmulas de fome me leva ao delírio de um lugar que eu nunca estive e talvez nunca esteja.

Um passo de cada vez cria a esperança destruída de algo incerto e incapaz de satisfazer qualquer pensamento momentâneo de que tudo ficará bem. É aquele velho veleiro que que atravessa o largo de Oblast, no gelo, no frio, no nevoeiro... A ideia nunca foi partir, pois, não há um ponto de partida. Entende como é simples e concreto e ao mesmo relativo em dado momento que se pensa devido lugar que pairamos? É a complexa compreensão do tudo e o nada ao mesmo tempo, é o aperto no peito de não haver certeza de nada do que se deve a própria vida, é compreender e acalmar o pranto, pois não há nada a ser feito a não ser continuar caminhando. Um dia talvez isso tudo se concretize em uma soma de variáveis e inconstantes. Hoje falamos sobre o aquecimento global e amanhã de repente nos tornamos os próprios medíocres que se entregam a produção em massa. Não há como pretender o fim sem um começo, não há como jogar-se a própria sorte quando o sentimento de abandono lhe parece confortável, abandonado estás e abandonado ficarás, a mente é um deserto de possibilidades e não haverá nada melhor para hoje do que a caça sendo cozida na fogueira do inferno criado por nós mesmos. Compreende que solução e problema são apenas questões de ponto de vista? Ao se entregar em um momento de pensar na ideia de objeto e observador, quando alteramos o olhar e nos vemos do outro lado as coisas parecem fazer mais sentido, porém, sabemos que mudar o meio em que vivemos pode causar uma situação catastrófica dentro de um ameno paradoxo que contraria os mais esperançosos. A resolução de problemas não deveria ser uma ótica humana. Preocupar-se demais com o futuro nos faz pensar nas piores probabilidades, sempre. Quando a ideia é apenas continuar caminhando. Poupamos dinheiro para que não falte amanhã, poupamos energias para que tenhamos amanhã, poupamos alimentos e até muitas vezes deixamos estragar pois poupamos para o amanhã, deixamos de realizar coisas pois podemos realizar amanhã, uma sociedade pautada sempre no futuro, nunca haverá de ser uma sociedade sadia.  

De volta a estrada, observando os cânions que fazem jus ao sol do entardecer, uns diriam que é belo, outros se preparam para a falta de luz e calor, outros ainda diriam que a Lua fará uma noite clara. Outros ainda compreendem que a Lua iluminando a noite transforma qualquer ser vivo em presa fácil aos coiotes.

Para nós, pouco importa, o presente deve bastar.


quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Carta a Vom - n 05 - A discrepância


Meu caro Vom, te escrevo mais esta carta enviando notícias deste planeta inóspito que vos chamam de Terra. Já soube das guerras que ocorreram e ocorrem pelo petróleo? É uma carnificina que banha os países do oriente médio de sangue, alguns dizem que precisam de mais combustível para suprir suas necessidades econômicas mas eu não acredito muito nisso, acho que o real problema é a sede de poder, quando se igualam as coisas os que tem muito não querem ter menos, logo acabam por simplesmente fazer qualquer coisa para se ter os objetivos alcançados e quando digo qualquer coisa pense nas piores atrocidades que conseguir dentro de sua vã filosófica pureza, é difícil para mim também. Ao longo do tempo receio estar ficando cada vez mais velho e ranzinza, Volga está aqui ao meu lado, miando e concordando. É estranho como esse gato compreende o que escrevo, não falo pelo fato da leitura em si, mas, meu cirílico não é dos melhores, ainda mais com as mãos trêmulas. Volga concordou de novo.

Meu amigo, fico pensando as vezes nas questões da relatividade em que 1 ano aqui significa 15 anos aí na estação. Penso em como seria isso para você, meu caro amigo, que quando se foi daqui tínhamos basicamente a mesma idade e agora, tanto tempo depois, está com muito mais do que 300 anos, uns 500 talvez. Ah, meu amigo, que falta que eu sinto das nossas longas conversas, enquanto degustávamos daquele conhaque contrabandeado de Donetsk, sem gelo, sobre o espaço dentro dos conceitos americanizados “Outer Space” e “Inner Universe”.  Volga se cansou da leitura e foi dar sua caminhada noturna, ele sempre faz isso nas noites enluaradas e chuvosas, temo por ele, esse gato sabe ler, mas, sempre volta machucado de alguma briga e Ekaterina passa todas as manhãs limpando os ferimentos.

Hoje me deparei com um assunto um pouco mais sério, meu amigo. Hoje ao acordar percebi o quão triste ando pela casa, as meninas foram embora, o Volga não é boa companhia nem para si mesmo e entrou em depressão desde quando você partiu, deve ser por isso que ele sai todas as noites, era noite quando tudo aconteceu, aquele carro veio e de malas prontas embarcaste, tudo o que eu poderia pedir era que tivesse cuidado e foi o que aconteceu, todo cuidado foi mantido e ainda assim parece as vezes que escrevo para o nada, parece que ao entregar as cartas no balcão do почта (pochta) elas entram em uma espécie de portal que não leva a lugar algum. Isso significa que de certa forma a nossa comunicação não existe, talvez você se sinta abandonado aí, tanto quanto eu me sinto aqui. São dias difíceis meu caro amigo. Hoje o dia não avança e as vezes percebo algo se movimentando no céu enquanto encho meu coração de esperanças de que um dia nos veremos novamente. Eu com meus 90 e tantos e você com quase 1.500. Seria engraçado ou talvez trágico nos encontrarmos frente a própria morte com uma diferença tão gritante assim.

As vezes penso em colocar um fim nisso tudo, as vezes penso que tudo não passa de um sopro, as vezes tenho que me satisfazer com o pão e o leite que oferecem, as vezes um banquete nos anima, as vezes a simplicidade de uma cabana acaba sendo mais acolhedora do que o palácio e as vezes eu entendo bem o que significa o pó dos livros, o que significa as cinzas da lareira, o que significa o veleiro que parece sumir no horizonte perante o lago de Oblast, o que significa a chaminé que expele a fumaça menos densa da lareira apagada apenas em brasas pequenas, o que significa a morte, o momento em que a lâmina da guilhotina cai, em meio ao marasmo da casa vazia.

"As vezes entendo o porquê não gosto muito de lavar louça. Geralmente as soluções da vida vem quando se lava os pratos, as colheres... as facas."

Faber Krystie McDonnadan