O vazio toma conta e o corpo age por impulso, ele pulsa, ele
vive, já a cabeça não faz nada além de pensar o tempo todo em acabar com a dor,
mas, que dor é essa? De onde vem e para onde vai? Daqui do alto deste prédio de
onde escrevo talvez minhas últimas palavras dá pra ver um mundo acontecendo
como um grande formigueiro, olha ali, acabou de passar a mãe com o filho no
colo, os carros transitam de forma tão pouco sincronizada que me arranca um
riso amarelo que talvez poucos entendessem a graça disso tudo. O telefone toca
insistentemente, vibra, como se eu fosse a última esperança de alguém e eu sei
que não sou, eu sei que as pessoas se apegam às outras e que com um passe de
mágica elas deixam de existir, está no grito, está no não se importar, está na
empatia que não parece ser utilizada dentro de casa.
As velas daquele apartamento, daqui de cima da pra ver o
casal que janta junto em um clima tão belo, dá pra sentir que a comida é simples,
mas, ali o que importa é a companhia um do outro. As flores que ela trouxe, o
vinho que ele escolheu, é bom, já tomei uma garrafa toda daquele ali. No
apartamento ao lado a TV está ligada para ninguém... será que deixei a TV
ligada? Será que esqueci a chaleira no fogo? Será que a conta de luz virá alta
neste mês? Será que a energia não vai acabar hoje? Os postes daqui de cima
parecem tão pequenos, até as faixas na rua, os carros passando ainda me tiram um
sorriso amarelo, por que será, hein? Acho que nem eu me entendo. A relação do
entendimento sobre um momento como este. Por muito tempo me senti feliz e hoje
parece que recupero tudo isso, devagar, acho que o final acaba sendo assim, a felicidade
unida a um certo desespero pelo desconhecido que se aproxima, como uma criança
perdida num shopping. O casal, do jantar à luz de velas parece se desentender,
ela gesticula como se estivesse brava ou algo assim, ele ouve com atenção, mas
parece não conseguir sair deste dilema, dá pra ver na cara dele. Nossa, um
acidente, na esquina, três carros, dois no cruzamento e um que estava
estacionado, o estrondo foi bem alto, tão alto que acordou o cara que estava
com a TV ligada e dispersou a conversa acalorada do casal, até a senhora do
andar de cima parou pra ver. A coisa foi séria pelo jeito, ninguém saiu dos
carros ainda e escuto a ambulância, bem longe, tão longe que não consigo
adivinhar a direção que ela virá, mas, menos mal, está vindo.
Vem chuva, a brisa traz aquele cheiro característico, cheiro
de terra molhada, como dizem. Estou com sede, será que tem água em casa? Será
que está gelada? Uma cerveja agora cairia bem, ou sei lá, um refrigerante com
umas duas pedras de gelo, talvez um chá gelado. Hoje fez um calor insuportável,
ainda bem que vai chover, as plantas agradecem, as pessoas também, claro,
dormir com barulhinho de chuva é uma sensação tão boa. Lembro quando eu era
pequeno e debruçava na janela do meu quarto para olhar os relâmpagos e raios
que caíam durante as tempestades, aquilo me maravilhava. Era tão bonito e
único, a chuva sempre foi um refúgio para a minha alma, parecia recarregar as
energias, toda chuva eu sempre acabava apanhando da minha mãe por me molhar e
pelo perigo de caminhar em locais abertos. Olha, chegou a ambulância, que bom,
salvarão todos, espero. Já tem uma movimentação grande na rua, o pessoal meio
que tentando retirar os acidentados ao mesmo tempo que alguns ainda parecem
conter estes, todo mundo sabe que não se pode mover ninguém de um acidente de
trânsito, a não ser que haja uma grande exceção ou algum problema que coloque a
vida desta pessoa em perigo. Enfim removeram as pessoas do carro, mas estão
cobrindo os corpos, a pancada foi realmente feia, acho que morreram. Os
jornalistas apareceram para fotografar a cena do acidente e escrever suas
matérias, será que estará nos jornais? Será que as estatísticas cresceram? E se
estivessem embriagados? Será que perderia o glamour? Já vi gente falando sobre
isso e as vezes até desejando a morte de pessoas que se embriagam e depois
dirigem seus carros.
Analisando a situação, acho que já vi coisas demais por uma
noite mesmo sabendo que as piores coisas sempre acontecem quando eu fecho os olhos.
É uma coisa complicada, perder o sono as vezes por preferir a exaustão a adentrar
lugares que teoricamente não deveriam existir, é como se eu estivesse correndo
dos meus sonhos o tempo todo e acordar com os olhos mareados, eu sou o único
que não quer ser o herói e nada sobra para mim a não ser morrer sozinho. Algumas
vezes nos sentimos como se a ideia de morrer fosse uma ideia palpável e segura.
Como se fosse apenas o fim de tudo; O fim das lembranças, o fim das
expectativas, o fim das mais variadas formas de sofrimento.
É um deserto tão grande o nosso pensamento, ao mesmo tempo
parecemos nos preocupar com as coisas que deixaremos para trás. Quem ficará,
como ficará? Quando é que as coisas serão amenizadas? Será que ficarão bem?
Será que tudo será como eu sempre pensei que seria? Será que vão sentir a minha
falta? Será que as pessoas continuarão suas vidas da mesma forma? Será que eu
realmente esqueci a chaleira no fogo? Será que a porta está aberta? Será que eu
deveria ter um cão ou um gato? Um hamster? Será que eu deveria jantar antes de
partir? Tratar todos os dias como se fosse o último te faz parar de viver. Ao
imaginar como seria, se morre um pouco mais.
A morte é palpável, é o final, é a perpetuação, é a
permissão. A cada dia que passa, morro um pouco mais. A cada dia que passa,
estou ainda a dois passos do precipício.
E já está amanhecendo...