Contam uma história por aí de certa garotinha que
perambulava pelos becos mais escuros das ruas mais escuras da cidade mais escura
(complexo? Não né?). Ela tinha um brilho nos olhos que pareciam saltar de suas pálpebras.
Enquanto ela caminhava, todos os acostumados à escuridão tinham uma luz para se
guiar, sim, todos eles eram dotados de uma cegueira. Passavam o tempo todo
tateando pela cidade e por todo o caminho, a qualquer momento aconteciam
acidentes, tanto no trânsito quanto nas calçadas. O risco de infecções e
complicações era muito alto, já que não havia limpeza das vias públicas e dia
sim dia não alguém não voltava para casa. O tempo consumia e o odor de morte
geralmente era confundido com o próprio cheiro pútrido da rua, da cidade e de
todo o entorno. Os vizinhos dali não tinham coragem de adentrar ao caos. Diziam
apenas que havia vermes do tamanho de caminhões (aquilo é claro que era
mentira). Nos hospitais, por incrível que pareça, era o único lugar que tinha
luz, um médico estrangeiro salvava vidas, tanto no consultório quanto no
próprio centro cirúrgico, era um lugar onde uma única lâmpada ficava acesa, é
claro que era o terror e a salvação para todos os sobreviventes.
Algumas vezes, a luz do centro cirúrgico que dava para uma
sacada no 42º andar se apagava. Isso deixava a cidade pouco mais escura, nada
que fosse notado por ninguém, senão pelo doutor que ali tratava de todos os que
podiam alcançar o 42º andar. Vez ou outra ele colocava mais um pequeno ser no
mundo, os partos eram comuns, difícil era chegar a idade adulta, por isso as
mães geralmente carregavam seus bebês em tempo integral, inclusive na hora de
dormir, eram fases difíceis quando o bebe começava a dar indícios de engatinhar
e caminhar, já aprendiam logo cedo a tatear e valorizar as narinas (qualquer
gripe nesta altura do campeonato, seria o fim) já que se guiavam pelo cheiro da
mãe que quando sentia ter perdido sua cria, exalava um odor acompanhado de um
grunhido, (mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmó). O pequeno ser sentia o cheiro e
escutava o som do chamado, assim saberia que a mamãe acordou e que poderia
agora desfrutar do colinho.
Não aguentava o cheiro da cidade, sempre que era necessário
ir ao supermercado, o Doutor utilizava mascara de oxigênio, não poderia levar
muita coisa, já que já tinha nas costas um cilindro de uns 30 quilos. Tinha
nojo da cidade e do que via, sim, ele via muito pouco já que tudo era escuro,
muitas vezes comprava sem querer coisas estragadas, mas, bem, ele sabia o que
fazer e... bem... Bigatos eram pura proteína.
Na rotineira volta para casa, não poderia deixar de admirar
uma luz que piscava no alto do prédio do banco, não era tão alto, um prédio de
uns 3 andares onde as pessoas tiravam dinheiro e pagavam suas contas,
geralmente pagavam mais ou menos o valor que estava descrito, é claro que
ninguém sabia quanto dinheiro tinha e muito menos o quanto dinheiro cobrar pela
conta, começaram a pensar em um modo mais simples de cumprir um acordo de ao
invés de pagarem pelo valor que achavam que tinham as notas. O caixa do banco
ouvia o BIP (quando acertava o código de barras, isso poderia demorar 5 minutos
ou 3 horas, chamavam de burocracia) e gritava um valor de acordo com o tempo do
BIP. “BIP”, “5 notas”. Não tinham ideia de quanto dinheiro iam nestas 5 notas,
que insistiam em apenas valer 1, mesmo possuindo um valor de 50. Mas, ninguém
conseguia saber mesmo quanto tinha. Subindo pelas escadas, já que não entraria
de maneira alguma no elevador, eram apenas 3 andares e não faria a maluquice de
subir no elevador, ao ver um braço escapando pela porta que fechava, subia (com
braço para fora, decepando-o). Subindo as escadas ainda tropeçou em algumas
coisas que se pareciam seres já sem vida. Um tombo na escada poderia ser fatal.
Apenas sem entender por que subiam as escadas se não sabiam o que tinha lá no
andar de cima, aliás, eram seres que não sabiam por onde andavam, mas, andavam.
(Foco na câmera em primeira pessoa olhos do doutor, dentro
da máscara, respiração forçada, barulhos estranhos de algo se movendo
arrastado, claridade lunar, escadas a vista, 2º andar, 3º andar, mirante)
As placas foram colocadas antes da grande catástrofe, era o
que diziam. No momento em que alcançou o alto do prédio, viu a pequena
garotinha, ela estava admirando as pessoas caminhando ao redor da circunferência
de luz que seus olhos causavam. Ninguém tinha a coragem de olhar para cima,
acreditavam ser alienígenas ou alguma força maior pronta para devorá-los. Ela sorria.
Se divertia com o caos que causava com seus olhos. Ela cantarolava uma canção
de ninar, uma caixinha de música em uma de suas mãos. Fazia o tintilhar. - Tím,
timtim, timtim, timtim. Timtim, timtim, timtim. Timtim, timtim, timtîm, tim.
Pisou em algo que fez crec!
Ela parou de sorrir, olhando para trás lentamente (com muito
medo. Como alguém chegou ali sem se matar nas escadas, já foi mencionado que
ela não tinha corrimões?) a luz de seus olhos ofuscaram a visão do rapaz que
estava apenas curioso. Ela levantou-se admirada, nunca tinha visto uma mascara
daquelas, um cilindro daquele, produtos de limpeza e assepsia. Ele murmurou
alguma coisa, ajustando as lentes para a versão solda. Agora poderia enxergar a
pequena menina que aterrorizava toda a cidade com seus olhos de luz brilhante.
Sentou-se no parapeito, admirando a vista da cidade do terceiro andar do dito
prédio do banco. Num escorregão, despencou lá de cima, o tubo de oxigênio
contribuiu com a explosão que jogou estilhaços para todos os cantos da rua
escura. Os olhos da garotinha, acostumados com toda carnificina possível,
apenas observou a queda e todo o sangue que se tornaria mais uma mancha seca
dentre tantas outras manchas na rua. Os carros atingidos não paravam, as
pessoas que andavam tateando pela calçada e todo o cotidiano não parou. Ela se
divertia ainda com os medrosos e esperava aquilo acabar de alguma forma
diferente. Emocionava-se com a história contava pelo médico minutos antes de
sua morte, ele se dizia apenas um cumpridor de um juramento, fazia tudo o que
fazia pela profissão, sentia certo cansaço apenas, não sabia como sair dali,
não podia deixar todos aqueles seres sem cuidados.
Enquanto dava corda em sua
caixinha musical, uma lágrima caiu de seu rosto, sua lágrima também brilhava,
em total igualdade ao seu olhar. Foste amaldiçoada com o poder da visão dentre
tantas outras coisas entre os ossos quebrados e toda a carne que fedia, o som
daquela rotineira cidade sem luz, o céu poluído e árido, não dava indícios de
que algo mudaria, ao som da caixinha, ela continuava olhando para baixo e
obrigando as pessoas a correr daquela luz misteriosa chamada de nociva.