Faber, as vezes me encanto em saber que está por aí. As
vezes eu me olho no espelho e vejo um tanto de você. Lembro dos dias que toda a
família te chamava para observar os campos ainda verdes do início do outono e
você raramente saia do porão. Enquanto Pyotr ainda ansiava por melhorar as
apresentações na corte e toda aquela preparação da Ekaterina para o baile real.
Lembra? Claro que não, eu sei. Você sempre esteve parado no tempo para esses
valores mundanos. Eu sei, você está hoje onde sempre sonhou. Eu temo que não
volte mais, mas, enfim, gostaria que soubesse que estamos todos bem, de certa
forma. No oriente médio lançam bombas químicas, gases, como na primeira Guerra.
De fato, receio termos que voltar a utilizar as máscaras da
peste, mas, hoje sou apenas eu ainda neste espaço/tempo indefinido entre o firmamento
e o que chamamos de limbo. Não reclamo, apenas vago pelas entranhas desta terra
sem escrúpulos ou momentos prazerosos. Creio que Walt Whitman tinha receio de
compreender toda aquela indiferença em relação a Ben Franklin, mas acho que
este tempo não compreende ao seu e nem a sua pequena escala via Sputnik, sei
que enxergas a Terra como uma bola multicores onde predomina o azul, mas me diz,
tire esta duvida da minha cabeça. Ela é tão bonita quanto parece ser? Digo. Daqui da crosta os seres humanos são tão arrogantes. Parece que eles não
entenderam o recado enviado por Deus. Acho até que eles mesmos inventaram essa
história de Deus para colocar as pessoas em pequenas jaulas mentais, você me entende?
As vezes é mais fácil que as pessoas sigam ordens quando elas temem que o não
cumprimento delas traga uma punição eterna. Não sei se me faço claro, mas
existem dúvidas que me assolam em relação ao poder das palavras contra o das ações.
Peço que meu caríssimo irmão não se sinta ofendido com minhas dúvidas, mas
penso que talvez Ekaterina tenha sido mais feliz ao lado de sua esposa Lucrécia
ao invés de se entregar ao convento e àqueles padres corruptos que só
conseguiam olhar para suas pernas e por mais que fossem castos, sabemos que a
oportunidade faz o ladrão e Ekaterina nunca foi muito comportada. Eu confesso,
tive medo de que ela colocasse aquele convento abaixo e o transformasse em um cabaré
ou coisa parecida.
Faber, meu caro Faber… ou como diria Whitman, “Oh Captain!
My Captain.” não deixe de escrever, aquele gato que deixaste aos meus cuidados
sente muito sua falta, aliás, ele parece ler suas cartas quando eu as abro, mas
parece também as amassar com profundo desprezo depois que compreende que você
não voltará mais. Fico receoso que ele fique doente pela sua falta. Eu sempre
deixo o rádio ligado nas ondas sonoras da estação especial e ele sempre
identifica o seu espirro matinal ou seu ronco durante o sono. Ele move as
orelhas de uma forma engraçada, mas apenas as orelhas, é um movimento
milimétrico. Por fim, mande um alô as vezes. Estamos eventualmente escutando
Tchaikovsky, como você havia pedido para um bom relacionamento entre nós e o felino
(eu hoje o chamo de Volga).
Ekaterina mandou uma carta esses dias, está em
Dallas com Lucrécia e não tem data de retorno à Rússia. Elas se dão tão bem,
espero que elas se casem e tenham muitos filhos. Infelizmente não tenho tanto a
dizer sobre elas já que tudo o que sobrou da carta foi a data e o local, o
Volga rasgou tudo e ainda rosnou para o carteiro e segundo o mesmo, ele nunca
viu um gato rosnar daquele jeito. Pyotr disse a pouco que o Volga miou se
desculpando, o coitado pensou que a carta era sua e eles estão montando o
quebra-cabeças, mas não creio que terminem antes do ano novo, assim que
finalizarem, eu mesmo escreverei sobre como estão as meninas.
Saudações de Moscou, esta cidade continua azul, misteriosa e
bela. Pyotr sente sua falta e todos os dias fica buscando a ISS com
seu telescópio. Volga não disse nada, eu acho que ele prefere dizer tudo quando
vocês se virem novamente.
Com carinho, Fyodor.
“Nas mais sinceras perspectivas, em um tom angustiado pela
falta ou pela presença de um ser supremo. Não deixe que o encanto pela vida
seja perdido. Não há nada mais belo do que ter o poder de observar os campos
verdes de Outono ou até mesmo saborear as frutas da estação. O ser supremo vive
dentro de nós, nós somos supremos dentro de um sistema, nós criamos e
alimentamos o sistema. Se algo está errado, logo nós estamos fazendo errado.
Falo da individualização da culpa, não podemos culpar apenas uma pessoa pela
catástrofe que a vida nos apresenta. Assim como não podemos deixar de admirar
as coisas belas que a vida nos traz. Como em uma serenata melancólica, por mais
depressiva que ela seja, ainda é uma bela peça para se apreciar junto a um bom
whisky e a um bom tabaco."
Fyodor M.