segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Devaneios


É sabido que quanto mais conhecemos da história, mais deprimidos ficamos após confrontar os ignorantes repetindo o mesmo ciclo. A história serve não apenas para nos deleitarmos sob as pinturas, esculturas e restos mortais, ela serve como uma questão evolutiva para que tenhamos um norte ao criar, olhar e agir, assim como entender as variadas formas de chegar a algum lugar e também de como não proceder em outros casos.

O que vivemos hoje é nada mais do que uma mescla entre a necessidade de evolução e a incapacidade de compreender os ecos do passado. Entramos é claro em várias outras vertentes como o descaso de governos perante as nações que realmente necessitam de ajuda. A ideia parece absurda, mas ao mesmo tempo não podemos deixar de compreender as perspectivas entre os continentes e ainda chegando ao consenso de que as nações se tornam insulares quando se é falado algo sobre doação.

Empresas multinacionais pedindo a ajuda da população para levar água potável para África e Sudeste asiático enquanto outras produzem o suficiente para adquirir estes países. O problema não está no quanto isso custa, mas na vontade de ajudar as pessoas mais necessitadas levando o custo disso em consideração, como se uma vida tivesse mais valor que a outra.

Não é hora de encontrar culpados, mas de compreender que para que todo esse processo evolutivo, foi necessário que os povos entrassem em conflitos, foi necessário que se escravizassem os índios, negros e todos os que não tinham como se defender do “homem branco”. Muito sangue não-europeu escorreu desde a expansão marítima, muita coisa aconteceu e a história que ouvimos, sabemos que é a história dita pelo agressor, pelo europeu que se lançou ao mar, porém, ainda assim temos o dever de amenizar tudo isso da melhor forma possível, entendam bem, amenizar, já que os povos conquistados que ainda não foram extintos ainda vivem com os traumas do passado. É hora de deixar a visão do colonizador de lado, parar de olhar para os outros com diferença. É hora de compreender que o mundo é um só e ninguém que vive nele deve passar fome.

Massacres na Ásia menor e ilhas do sudeste asiático, exploração e mortes em África, população indígena extinta na América do Sul, Central e do Norte. Muitas as coisas que poderíamos aprender e evoluir de formas totalmente diferentes, quem sabe até espirituais compreendendo o crescimento em tribos e sabemos que a eletricidade seria inevitável um dia.

Ter esperança que a humanidade se torne mais humana, eu sei, é como encontrar agulha em um palheiro, é uma ideia difícil de se administrar. Dizer que a mudança começa de dentro pra fora também é uma falácia, já que enquanto as emissoras de TV fazem programas de arrecadação uma vez ao ano e (talvez) repassem o montante as casas assistenciais, compreendemos que este seria uma raspa, uma fagulha, um cisco, um grão... da enorme ponta do iceberg. Você pode ajudar? Sim, mas, você precisa entender que as palavras são belas e audíveis como música quando entramos em um altruísmo que as grandes corporações não têm, nunca terão e jamais tiveram.

Ganha-se dinheiro com os miseráveis, ganha-se nos testes de remédios, ganha-se na propaganda para arrecadação, ganha-se no olhar bondoso da população que se compadece com as imagens, ganha-se com tudo o que é mostrado, criando comoção mundial, na tela de uma TV, na tela de um Smartphone, nos outdoors eletrônicos nos grandes centros comerciais. A história não se repete desta vez, a involução sim. Alguns são reféns, outros conhecem um pouco mais, porém estamos todos no mesmo sistema, e alguns são tão dependentes dele que lutarão até a morte para mantê-lo enquanto nós tentamos abrir os olhos para um mundo sem desigualdade, fome, morte e dor.

No fim de tudo.

Um pavão belo, brilhante, sedutor e mortal.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Tous les jours - 03


Certo dia Antunes e Léo conversavam como quem não quer nada, aqueles papos de bar em que se programam viagens, falam sobre sagas épicas passadas na vida, futebol, mulheres e etc. Bem naquele momento que o Antunes falava sobre uma transa que teve com sua esposa quando ainda nem namoravam. Antunes lembrava bem daquele dia como o dia em que eles “fizeram amor” ao luar chapados de cogumelo, aquela devia ser uma lembrança e tanto, concluía Léo com aquele ar de deslumbre.

Já o Léo tadinho, não tinha muito jeito com as mulheres, ninguém sabia explicar, ele travava, mas gostava muito de flertar, conversar, era um cara legal que encontraria algum dia alguém pra ele. Isso era o que Antunes sempre dizia, não que o Léo quisesse namorar, se casar, ter filhos... ele mesmo, nunca foi enfático neste assunto, era mais fácil encontrar Léo debruçado no balcão do boteco do que em uma baladinha “playba”.

Juca estava ali também, mas estava quieto, e ambos notaram. Ao mesmo tempo ele estava olhando para o horizonte, dando um gole em sua cerveja e um trago forte no cigarro, era como se ele estivesse em um transe ou buscando alguma coisa num emaranhado de pensamentos. Antunes que estava mais familiarizado na mesa, o cutucou, queria explicações sobre aquela epifania que ele entrara, Juca desconversou, mas Antunes sabia bem que algo ali estava bem complicado de sair, como se estivesse entalado na goela, nem a cerveja gelada e nem o cigarro davam conta de descer aquilo.

Papo vai, papo vem, mesas sendo guardadas, garçons indo embora, o bar fechando, os 3 levantaram e foram para o balcão tomar a saideira, o Léo tomou o caminho do banheiro para mijar enquanto ambos pediam 3 doses de whisky, para fechar a conta. Encostados no balcão, Antunes admirava e ainda provava o cheiro do whisky e o assemelhava com a madeira do balcão, o carvalho, degustava aquele trago no scotch e outro no Chester, o cinzeiro de companhia no lugar do Léo que não voltava, Juca deu a primeira letra e Antunes completou quase que compreendendo o que ocorrera naquela hora, na mesa, em que Juca estava quase estático.

- Sabe Antunes, eu não queria muito falar isso perto do Léo, ele fica sempre constrangido quando surgem esses papos na mesa e tal, eu sei que você não liga, mas o cara fica boladão.

- Você acha que ele é viado? Não que seja da minha conta, o cara é meu irmão, ele que faz o que quiser da vida dele.

- Não, ele só é timidão mesmo, vai achar uma mina pra ele.

- Saquei, mas então, qual o peso meu caro, o que acontece?

- Ah, você ali falando sobre fazer amor, eu ainda estou com uma leve ressaca de ontem.

- Ontem não foi quando você saiu com a aquela moça, amiga da irmã do Léo?

- Sim, foi.

- E tá de ressaca? Cara, uma gata daquelas!

- É. – Juca foi ficando murcho –

- Qual foi porra! Conta logo! O Léo não volta mais mesmo, vou pegar o Whisky dele – derramando um pouco em cada copo –

- Cara, aquilo foi impressionante. Nós fomos pra minha casa, lá eu servi uma dose de whisky para cada, mas a gente nem conversou muito, foi bem direto ao quarto cada um tirando a roupa um do outro e se pegando pelo corredor. Nós transamos e depois ficamos horas deitados, nus na minha cama sem nenhuma pretensão, a gente se olhava, sorria, se beijava e voltava a se abraçar, essas coisas fofinhas que as pessoas fazem quando estão ali curtindo o momento.

- Mas o que tem de errado nisso, eu pensei que tinha acontecido algo bem complicado, sei lá, ela enfiou o dedo no seu cu? – Antunes concluía rindo junto com o barman –

- Não porra, a cena se desenrolou a gente deu mais uns beijos e eu fui mijar. O banheiro meio que dá de cara com o meu quarto e mijei de porta aberta mesmo, sem nenhum pudor. Dei descarga e virei pro quarto, quando vejo aquela mulher sentada na pontinha da cama, nua, pernas cruzadas eu cheguei perto me ajoelhei, abri as pernas dela e a chupei como nunca chupei outra mulher, ela acendendo um cigarro com o copo de whisky na mão, deu um trago de olhos fechados, soltou a fumaça enquanto gozava, abrindo os olhos, me olhou, deu um bico no whisky e continuou me olhando com uma cara de satisfeita, feliz, sabe? Ela levantou, me beijou, colocou o cigarro na minha boca, entregou o copo quase vazio e disse bem baixinho, que bunda linda você tem. Entrando no banheiro, fechou a porta e tudo o que eu pude fazer foi abrir a janela do quarto e observar aquele céu da manhã enquanto dava o ultimo gole no copo e apagava o cigarro no cinzeiro.

Ambos se despediram procurando o Léo que não estava mais no banheiro e em nenhum lugar daquele estabelecimento, segundo o Juca que acabou indo procura-lo. Acabaram indo embora, o barman guardava os copos, limpava os cinzeiros e o Léo, bem, o Léo estava nos braços da garçonete, nos fundos.



Simplório da Silva


Aos 48 do segundo tempo, nascia um homem tão calmo quanto o espelho d’água dos palácios dos contos de fadas. Simplório, nascia de parto normal em um parto que todos estavam bem calmos, a mãe quase não fez força ou sofreu, o pai estava ali ao lado, bebia um gole da cachaça de engenho que ele mesmo produzia em seu alambique quase que pessoal.

Era um pequeno bebezinho, tinha a face humilde, nascera sorrindo e assim que nasceu os pais olharam para ele e disseram juntos, humildade, mas, quando notaram que se tratava de um menino, tornou-se Simplório, Simplório da Silva.

Durante toda sua infância Simplório dava a entender que talvez tivesse algum problema cognitivo ou de dicção, era sempre feito de bobo pelas crianças ditas mais espertinhas. Eles riam de seu nome “esquisito”, praticavam o tal bullying comendo sua comida, enfim, as famosas “brincadeiras” que as crianças se sujeitam a fazer com os amiguinhos. Simplório era de fato muito calmo, a ponto de não esboçar reação a não ser de dor em casos que se machucava, mas em relação as brincadeiras, ele sempre ria junto com todos, até mesmo no dia que um talzinho o deixou de calças arriadas no meio do pátio da escola. Ele demorou para subir suas vestes novamente, já que não parava de rir com a molecada.
Simplório cresceu, tornando-se um homem esguio e com a mente sempre aberta para novas experiências, era difícil ele dizer não e não precisava nem de pressão externa para que Simplório aceitasse as condições expostas. Com Simplório não havia negociação, era sempre sim ou sim, ele sorria e aceitava tudo de bom grado. Foi quando em uma rodinha de amigos, aceitou um tapa no baseado, o que o fez ficar ainda mais calmo, ainda mais humilde, Simplório, agora, digo, naquele momento, chapado, conseguia apenas rir e mal falava.

Em um belo dia, Simplório que aprendeu técnicas milenares circenses foi convocado para trabalhar como palhaço para animar as crianças. Foram 8 horas de festa, Simplório corria pra lá e pra cá, virou alvo das bexigas cheias d’água o que acarretou em toda a maquiagem borrada, roupa molhada e muitas risadas vindas de Simplório e da garotada. Na hora de ir embora, os donos da festa foram maldosos, sim, eu sei disso. Disseram ao rapaz que gastaram muito com a festa, que as coisas estouraram o orçamento e que infelizmente eles não poderiam pagá-lo, Simplório parou por 2 segundos, sorriu, abraçou as pessoas e foi embora, acenando para a molecada que restara no final.

Casos como este aconteceram várias outras vezes e Simplório nunca reclamava, sempre sorria e abraçava as pessoas. Ninguém sabia compreender o porquê daquele homem nunca reclamar de nada. Não eram motivos religiosos, não tinha explicação, ele era assim.
É dito que viram Simplório bravo uma única vez, e por menos de 2 segundos, quando em uma voltinha com uma nobre dama, ela estava levemente alterada após algumas cervejas, pegou Simplório pelo braço colocou ele dentro do carro e disse que o levaria para sua casa, Simplório nunca reclamava de nada, não seria naquele momento que reclamaria, né? Ela queria deleitar-se naquele corpo esguio, Simplório não era de se jogar fora e diziam por ali que ele sabia fazer massagem nos pés como ninguém, um prato cheio para qualquer mulher que gosta de ser bem tratada, enfim, naquela noite, no caminho da casa da nobre dama, ela parou o carro no meio da rua, deixou Simplório ali no banco do passageiro, sentou a mesa com outros rapazes e mandou descer as cartas. Ela foi jogar uma partida de truco! Simplório saiu esbravejando do carro até que encontrou um amigo que o abraçou, pronto, passou a braveza e o carro continuou no meio da rua, aberto, motor ligado, som tocando na rádio AM (ô saudade).

Simplório é assim até hoje, um grande amigo que as vezes os amigos tem raiva de tão Simplório da Silva que ele é, todos ficam bravos com as injustiças que acontecem com Simplório e até mesmo por vezes alguns tentam interferir no curso das coisas. Simplório sempre sorri dizendo o famoso “Deixa pra lá”, e no fim, quando todos se abraçam, todos riem ao mesmo tempo.


domingo, 6 de janeiro de 2019

Les Gens Disparaissent Tout le Temps


Como numa reprodução, o pintor abusava de tons escuros e tons amarronzados, tanto que naquele momento que o tripé bambeou e a tela foi ao chão, a tinta rabiscou toda para o lado da pancada.

Aquela mistura de tons amarronzados e escuros por incrível que pareça se misturaram em alguns pontos e por trás daqueles rostos antes pintados com certas feições mais alegres estavam monstruosos e na tentativa de modificar aquilo tudo, acabou encontrando saídas não muito convencionais fazendo com que todas as faces desta vez se tornassem sarcásticas. Em um riso macabro que viria mais tarde de seus pulmões, boca e feições, havia um espectro ao fundo da tela como se fosse saltar dali para fora que o fez pensar duas vezes antes de dar o toque final ou então dar um trago no whisky.

Querendo ou não, abandonar aquilo tudo não era mais possível, ele estava preso entre as ferragens e anseios, entre os nobres e famintos, ele estava ali, preso no meio dos dentes do monstro que pintou. Não tinha mais esperança de viver e arriscou um salto para fora do quadro já emoldurado. 

Em uma dessas vernissages na cidade velha em Lisboa 700 anos depois, ele ainda preso, tanto no quadro quanto entre os dentes do monstro. Ao olhar para fora, uma garotinha o observava e parecia que ela conseguia compreender o que havia por detrás de todo aquele sarcasmo e alegria reprimida. [Câmera gira, dos olhos da garotinha para os olhos do pintor dentro da tela, som ambiente, buzinas, carros e sirenes] 

A garotinha desta vez, trocando de lugar com o pintor, que desde então queria apenas finalizar o quadro. Finalizou e assinou, contente com sua obra. O tempo voltaria 700 anos atrás enquanto o vento entrava pela porta de madeira de um casebre, o whisky era finalizado sob a lareira, o velho pintor ainda em pé, arriscava compreender o tipo de vestimenta que estaria ali naquele meio abstrato após a queda da tela e do tripé, havia entre os tons pastéis um lapso de conduta vindo de uma sociedade doente.