Certa vez eu estava sentado em um banco de praça, lendo um
jornal enquanto observava as pessoas passarem, cinzas, rotineiras e espaçadas.
Parecia que o tempo não havia de ser tempo num calculo quântico sobre variáveis
de um mundo moderno. Os carros rasgavam as ruas inóspitas a outros seres
mundanos, dotados de imperfeições e escarrados ali no meio. Uns desejavam o
fim, outros temiam o ser maior de acordo com sua crença. Eram cinzas as pessoas
e os pombos que por hora atravessavam o meio fio de suas vidas, passo a passo,
hora lentos buscando sustento entre as rachaduras infinitas do asfalto, hora
levantando voo em ascensão as arvores que o vento tentava por sua vez derrubar,
estas se contorciam cheias de anseios de uma vida inteira no mesmo lugar desde
a semente até o fato de se romperem as fibras e ao chão se tornariam mais uma
espécie de abrigo, porto seguro, ou, quem sabe, mais um ser vivo decadente em
meio ao caos mundano.
Me chamava a atenção a moça que vendia flores, tornando algo
paralelamente belo com seu chapéu coco, tcheco, judaico, de abas curtas que ornavam
e ornamentavam para com a vestimenta puramente vitoriana. Ela tinha um olhar
distante como quem buscava um futuro quase que incerto dentro daquelas vielas
que compunham a praça. A cena se desdobrava com aquela garota que passava
enquanto os pombos saciavam sua fome com o milho jogado pelos idosos que viviam
ali para não deixar de viver. Ela possuía uma característica cor em seus
cabelos que de certa forma reluzia uma esperança tal qual quando o povo de África
cruzava o Gibraltar em um momento de guerra, a mesma guerra que se lutava por
paz regada a sangue e lágrimas, ela cruzava aquela praça lutando em sua guerra
pessoal e cotidiana.
Olhando para mim enquanto se aproximava, com um sorriso semicerrado,
quase árido, vil e belo ao seu modo. Era compreensível o seu sofrimento que
buscava um acalanto, buscava um alívio talvez diário que possivelmente era
enredado por um bolero sonolento e apaixonado. Carregava no olhar um semblante
de que aquele dia poderia ser o último de sua vida, carregava em si uma cesta
com algumas rosas, de papel, que não custavam muito mas que também não serviam
de nada para aquelas pessoas cinzas, normais e a solidão das pessoas nessas
capitais, parafraseando o saudoso Belchior em seus poemas musicados. Ao olhar
para mim percebendo que meu olhar já se perdera das notícias frias daquele
jornaleco para encontrar seu olhar em meio a todas aquelas pessoas que apenas atravessavam,
errantes, sem dignidade ou orientação.
Foi se chegando cada vez mais perto até sentar-se ao meu
lado e oferecer-me uma de suas flores. Dentro de mim eu sabia que talvez até
para mim mesmo as flores não tivessem tanto significado ou valor, eu não tinha
para quem oferecer um mimo ou agrado, mas, para ela talvez aquelas flores
fossem seu pão e a cada passo que ela dava naquela praça era um sinal de
esperança que preenchia seu olhar e coração, a esperança de ter o que comer ao
invés de dividir o milho jogado ao chão com os pombos. Ela dizia que restavam
apenas duas rosas e que iria embora descansar depois de vende-las. Meu jantar
daquele dia seriam as rosas de papel embrulhadas em uma folha de jornal velho
que escapou da reciclagem. Ofereci até mais do que valiam as rosas e ela
aceitou com lágrimas nos olhos quando insisti que ela ficasse com uma de
presente. Ela levantou-se, beijando meu rosto com carinho e agora sorrindo, me
fez sorrir também ao mesmo tempo que senti minha pele esquentar nas maçãs da
face.
As ruas iam ficando cada vez mais escuras, quando
atravessando em uma viela parei na esquina ao vê-la entrar em uma casa com a
faixada não muito bem cuidada mas com um aspecto belo aos meus olhos, no bar do
outro lado da rua uma fadista declamava canções tristes, iniciava então “As
time goes by” e eu me sentia em Casablanca, sozinho naquele momento em que o
avião parte para Lisboa. Resolvendo adentrar a neblina, parei em frente a entrada
na qual ela havia sumido no vapor e pude ouvir alguns gritos e sons de briga,
como se alguém estivesse apanhando ou sendo repreendido, ouvi sua voz trêmula
pedindo que parasse, pedindo clemência a alguém que talvez não soubesse o
significado disso. Ali não me dei conta de mim batendo fervorosamente na porta
quando um homem abre e me olhando com ódio questionava minha presença. Ofereci
o jornal que estava em meu bolso, causando ao menos 30 segundos de silêncio
entre os sons que castigavam tanto a mim quanto a ela, um silêncio ensurdecedor
que abraçava todo o contexto enevoado daquela noite fria composta por neblina e
sujeira das ruas mal varridas. Antes de bater com a porta em minha cara ainda
mandou que eu enfiasse aquele jornal velho em meu orifício.
Ao ouvir um pequeno choro perto da porta, bati com um pouco
mais de cuidado e para a minha surpresa ela abriu, estava com o rosto vermelho
de choro e de dor, seus olhos abriram devagar e antes que ela pudesse dizer uma
palavra eu disse, “Vem comigo, vamos embora, não garanto fortunas mas, garanto
uma vida melhor”, ela pediu que eu esperasse na esquina ao lado enquanto ela se
preparava e segui suas ordens à risca, foram as 3 horas mais longas de minha
vida, o bar fechando, os músicos indo embora dando seus últimos goles da
cachaça e eu os últimos tragos no cigarro. Quando vi a porta abrindo enquanto
ela saía era como se o Sol nascesse no dia pela 1ª vez.
Deitados em agora nossa cama, enquanto abraçava
carinhosamente seu corpo nu, banhado e ferido daquela noite. Nos beijamos uma
última vez antes de desejar boa noite e bons sonhos. Talvez naquela noite ela
tinha a certeza de que não seria mais necessário vender flores e que poderia se
prender aos seus sonhos. Naquela noite nós dois sabíamos o significado daquelas
duas flores no vaso da cozinha.