Como todas as noites em um momento
de sintonia com o cosmos, observava os rastros da Via-láctea, deitado sobre a
grama sintética, percebia que nada daquilo era real, inclusive o céu, aliás,
até mesmo o céu.
Tornava as coisas mais amenas a
vacina de prazer diária. Os escravos ainda viviam como num mesmo momento em que
todos se rebelavam, o menor sinal de rebelião era absorvido com doses de
inverdades e calúnias, se sentiam culpados por pedir bom senso e se calavam. Poderiam
se deitar na grana para observar o céu algumas horas por dia. Neste ponto as
horas eram divididas entre o simples e descomplicado capataz que de 15 em 15 minutos
acordava os dorminhocos e os mandava trabalhar.
Em sua razão, os mesmos avisavam
que estavam em seu período de descanso, o caso é que aquilo se repetia varias e
varias vezes, já que o capataz parecia ter amnésia, ou seja, durante todo o
período de descanso, todos eram avisados de 15 em 15 minutos que o trabalho
deveria ser feito, ficavam todos atônitos, uns levantavam, outros buscavam
tampar as orelhas, atitude que irritava por sua vez o capataz. Alguns de diziam
de saco cheio e se levantavam para trabalhar, resolvendo as coisas mais cedo,
talvez tivessem um tempo mais prolongado de sono.
Após o expediente nem tão
tranquilo, o nobre ser ainda tinha esperanças de que os ditos ajudantes
calçassem os sapatos para uma voltinha pelas ruas da vila, para mostrar sua
felicidade aos mais críticos e mantenedores da fazenda. Funcionava assim, todos
ganhavam a vacina da felicidade antes de sair do abrigo, portanto estavam
sorridentes e com uma vitalidade de dar inveja aos seres mais livres do reino.
As vezes um deles tinha desejos estranhos de comer fast-food ou beber uma cerveja
durante o passeio, este apanharia mais tarde no retorno ao abrigo, mas no
momento do passeio, ganhava tudo o que queria pois ninguém poderia entender o
que se passava.
A vida era complicada com o
capataz, até o momento em que o mesmo errou a vacina em um dos ajudantes, ao
invés de felicidade, injetou consciência. O que aconteceu foi estranho, foi
triste, foi libertário...
O agora nomeado desgarrado não só
parou de aceitar os argumentos falidos do capataz, como também resolveu parar
de se incomodar com os discursos durante o descanso. Olhar a Via-láctea de
certo modo transmitia a Urano um peso maior, um ser maior e mais científico. Em
chamas por mais estranho que fosse,
Chronos apenas observava a medida em que a rebelião começou.
Não haveria mais um minuto
sozinho naquele planeta. Sem religião, sem linhas retas. A depressão bateu no
fundo e o suicídio foi inevitável. A realidade causou um estranhamento ao ver o
mundo como ele é, causou também um momento de alegria ao perceber que o capataz
não era necessariamente insubstituível e daquele dia em diante, o momento foi
de graças e de descrenças.
Passeando pelos dias desleais,
teve que engolir seco que o capataz já estava atrás de outro para compor seu
lugar, a vacina de felicidade não mais seria dada de bom grado e por mais que a
vida fosse na prisão e no trabalho, os momentos felizes eram realmente felizes,
os momentos de passeio eram bem proveitosos. O problema era o depois, o
problema era voltar ao marasmo dos momentos ditos “Home, Sweet Home”. Não seria
mais obrigado a ser o que não queria ser, ao nascer, o doutor disse que ele era
problemático. O problema era a liberdade em suas entranhas, era a paz em seus
olhos, era a maneira de viver e era a maestria de compreender quando alguém
está sendo maldoso. Nos fim dos tempos, quando em seu leito de morte, pediu que
fosse transportado para o teto, gostaria de adormecer em seu sono eterno lá de
cima do telhado, mas não qualquer telhado, queria ir acima dos quadros de LED que davam a atmosfera aos transeuntes. Seu pedido foi tão emocionado, mas ninguém compreendia o que seriam as telas LED. Ele sabia, o céu não era céu, o
sol não era sol, as emoções não eram emoções, a robótica tomou conta de tudo e
todos. Até mesmo o capataz estava programado e não sabia.
Os mestres ainda humanos,
cientistas, pediram um momento a sós e questionaram em segredo como ele saberia
das telas LED que cobriam todo o mundo. Ele apenas sugeriu que ao passar noites
em claro a imagem era modificada a cada 7 dias e que a forma com que era
mostrada a via láctea, as luas, sol, habitat e formas de vida era bem surreal
ao ponto dos escritos em um caderno passado de geração para geração. O conhecimento
era passado ali, de um para o outro, até que o capataz se viu em uma solidão, e
por desdém dizia que aquilo era necessário e legal. Desta forma, saiu
distribuindo vacinas de felicidade por ai, manteve amigos e uma vasta
clientela. Por pouco tempo e cada vez menos tempo, até que o conhecimento foi
difundido e que todos eram capazes de gerar felicidade. Ao submeterem o leito
para acima das estrelas, ele se maravilhou com a vista e enfim tornou-se parte
do todo, seus olhos foram se fechando até que a inércia foi rapidamente convertida
em potência de arranque. Seu corpo, seus metais, fios e nano transmissores
estavam se desligando até que ele se tornou um corpo errante no cosmo,
tornou-se parte dele e desejou que todos fossem libertados. Mil anos após, o
segredo foi revelado e as placas retiradas, em meio a rebelião até mesmo o
capataz preferiu o voo a se manter no planeta, mas apenas após mil anos depois,
ele buscou todas as formas para se firmar, sem sucesso.
Dedicado ao cara que se tornou uma referência em minha vida. Se
entregou aos afazeres de uma vida solitária e se desprendeu sem deixar rastros.
Estou de saco cheio destes espasmos de felicidade, o mundo é um lugar inóspito
e cruel. Um dia a gente se vê meu camarada, um dia eu vou saber como é acima das telas LED.