quinta-feira, 31 de março de 2022

Toronto

 Eu queria dizer uma coisa breve, nunca foi meu plano te deixar.

Você com seus transeuntes que nunca param de andar, é natural, é fria, é calma e é tranquila. Toronto é de longe o melhor lugar que já estive, é onde me sentia bem no meu trabalho, me sentia bem em relação às pessoas tanto no tratamento para com os estranhos que pediam informação quanto na rispidez de outros que chegaram de outros países ainda crus e cegos pelo seu instinto de sobrevivência. Suas ruas são convidativas e nos fazem querer conhecer cada pedacinho, tanta coisa para se ver, tanto a se descobrir dentro de sua excentricidade do nascer de um dia ao nascer de outro dia.

Andar pelo cruzamento da Yonge and Bloor, ouvir ao longe Del Barber em sua musica lançada em 2014, Big Smoke. “Cegos pelas luzes da cidade Cego pelas luzes da cidade ninguém pode ver você parando. Faz tanto tempo desde que você viu as estrelas da pradaria e você não tem certeza de que pode lembrá-los, mas há algo aqui para você encontrar”. É uma música que fala sobre nossas raízes, sobre certas coisas que a gente se encanta quando descobrimos algo novo e como as coisas parecem sumir no éter. Seguindo por qualquer direção encontramos sempre uma arquitetura preservada, sempre muito antiga, sempre muito bem cuidada. Atravessar com pressa pela Union Station e adentrar como ratos às vielas da própria estação em construção dá um ar de conhecimento, tanto quando andar pelos subterrâneos e travessas externas entre os edifícios quando não pelas passarelas extremamente artísticas feitas exatamente para nos proteger do frio, a vida não para, eu nunca parei, parecia uma droga fortíssima injetada em minhas veias, desde a rotina mais natural como comprar tickets de metrô, como o mais fora do comum em voltar em um ônibus lotado de casa ao lado de 40 pessoas fantasiadas (entre eles um pirata e um casal de coelhos) e você com uniforme do trabalho quando o ônibus parava para manutenção as 2 da manhã e todos desciam em frente a McDonalds.

O café é praxe, ninguém vive ou fica sem e sempre tem um lugarzinho para conseguir um copo cheio. As Starbucks, Tim Hortons, McCafè e todas as outras conveniências 24h que também tinham uma máquina. Os restaurantes Jamaicanos para quando sentir saudade do arroz com feijão. Os shoppings, os maiores que já vi na vida, cheios de muita magia no Natal. Pessoas que em 10 minutos de conversa se tornavam amigas sem nenhum outro interesse por trás.

Lembro até hoje de como conheci a Sati, uma indiana que estava perdida e pediu informações, eu estava na cidade a 3 semanas, mas tinha meu celular que ainda funcionava. Ela Queria chegar na Adelaide Street, era caminho após o ônibus ter parado e deixado todo mundo ali em frente ao McDonalds. Eu resolvi ir a pé até a Liberty Village e acabei a encontrando, parada ao lado de um prédio. Dalí seguimos juntos, ambos com um inglês bem raso, mas que conseguíamos nos comunicar. Falamos algumas coisas sobre nossas vidas fora dali e nos despedimos quando a deixei em casa. Não trocamos contatos e nunca mais a vi. O fato nem era exatamente esse, mas como a cidade nos leva a destinos tão diferentes em tão pouco tempo.

E o Andrew, sempre me atendia no Brass Taps da Danforth, que cara sensacional, sempre tentava ensinar como pronunciar o nome da cidade da forma correta. "Is not Toron-to, is Turo-nou.", o Evren, que cara mais que sensacional, chegou como refugiado e tinha tanta coisa para dizer, para fazer, para mostrar. Ator, assim como eu, hoje ele tem um canal no Youtube e disse que um dia me contrata. 

Atravessar a cidade enquanto o Sol ainda não nasceu e acompanhar o acontecimento sentado no banco do streetcar é uma experiência tão fantástica quanto propriamente andar de streetcar. Observar as pessoas em pleno movimento junto da cidade que respira ar quente dos túneis de metrô, algumas pessoas dormem ali e sempre nos deparamos com elas quando saímos antes do Sol nascer. As estações Osgood, Christie, Chester, a Broadview... Woodbine... Bay, Bloor, Union... Sem deixar a Spadina, Eglinton West e pensar no passeio que é cada vez que se desloca, tudo vira arte, tudo se torna uma imagem a ser apreciada quando falamos de Toronto.

Não poderia deixar de falar sobre a Queens Quay no Harbourfront em seus cais ao longo de toda a orla. Ali encontramos os patos mais lindos de todo o planeta. Toronto tem vistas ótimas e como todo lugar, seus centros turísticos, CN Tower, o Aquário, as destilarias e tantos outros lugares lindos e famosos, mas essa não é a minha Toronto, A Toronto que conheci é muito mais do que os lugares turísticos, foi uma cidade que me senti aconchegado, como num abraço. Nunca desde então me senti em casa em nenhum outro lugar. Um dia voltarei, e desta vez para ficar, nosso adeus, foi apenas um até breve.


Cya my friend.


"The tower, the clock, the streetcar and the fog. All together in the same time, same way, same street... like the revolution, inside my hearth while a whisper pass by me, telling about the world and your point of view. I was scared a little and at least I thought by myself. Here is three things never stop: The clock, the fog and me."





quarta-feira, 23 de março de 2022

A Fobia e o Decreto

Era mais um dia de sol, com aquele vento frio que soprava entre as frestas da janela e adentrava os pulmões já dissecados pela química de um cigarro. O trago absorvia o peso dos dias enquanto arrancava a tosse lá do fundo, até mesmo o agasalho exigia um pouco mais de conforto àquele que mal vestia, mal cabia, era tanto a se cobrir que o tecido já não se suportava, as tramas hora fechavam-se e hora abriam, o tecido respirava e transpirava o álcool que restava naquele corpo que buscava calor e os fantasmas apareciam buscando ajuda onde todas as entrelinhas já estavam tão expostas quanto a febre.

Arritmia e condensação precipitavam diante do crepúsculo que se fazia presente por entre as arvores e torres de energia. As linhas tinham um ponto de inicio e final, o horizonte calmo e sereno denunciava a tormenta que se avizinhava no meio fio da calçada. As paredes de tijolos corroídos pelo tempo tinham data indefinida para se render a erosão e todo o processo de deterioração mundano. Ali se faria um túmulo onde os insetos mais desavisados seriam definitivamente aniquilados pela gravidade. Uma explosão na casa das máquinas tratava de um erro humano. O trago ainda presente assistia ao caos da própria janela, os pássaros assustados se movimentavam para um lugar seguro longe dali enquanto a dor dos entes queridos se resumia em gritos e pranto.

O piano ainda restava diante da sala do segundo andar já sem acesso após a destruição das escadas. Nas proximidades ouvia-se as tampas de esgoto batendo em seu anel metálico enquanto a água turva e barrenta descia a avenida carregando os corpos, carros, animais mortos e lama. A enxurrada vista do alto do helicóptero que fazia um voo panorâmico, antes de se chocar com os fios de alta tensão e consequentemente cair na quadra poliesportiva do complexo escolar, era o semblante do desespero dos que ali buscavam ajuda. O fogo tomou conta d’onde a água preferiu se eximir da culpa.

Após um tempo tudo silenciou, a lama acalmou, o fogo foi se apagando dando origem ao carbono e aos ossos dos que não puderam voar, o comum destino daqueles que no inferno se instalaram e ao léu se findaram clamando pela justiça divina. O estrago, o trago, o bêbado e a lamparina, davam o tom de mais um entardecer lindíssimo no paraíso enquanto as lanternas se acendiam sob o precipício.

Aqui jaz um cadáver, sem nome, sem família, sem lar e sem nada, não se sabe se teve seu último desejo atendido ou se pode fazer sua última refeição. O que se sabe é que a vida toda ele havia sonhado com este momento, o momento em que se explica o abrupto som de um trovão.