sábado, 20 de novembro de 2021

Carta a Vom - As memórias

Meu caro Vom, sempre inicio nossas cartas com este prefixo, já que tantas as vezes nos obrigamos a esquecer. O esquecimento parece uma ligeira defesa do nosso cérebro para que não guardemos tantas coisas as quais as vezes não possamos carregar. Como diria um grande amigo em um de seus desconexos textos: - “Te vejo neste contexto desde sua partida, como alguém que viaja e não volta, não tive nenhuma opção a não ser aguentar os mundos nas costas, daquele dia em diante tudo o que eu pude fazer foi suportar e entendo que suportarei até o momento em que passarei este fardo a outra pessoa que terá a minha imagem e semelhança, apesar de tuas loucuras, havia uma bondade infinita dentro deste seu coração, apesar da dureza, havia a compreensão, apenas sua teimosia me matava aos poucos assim como te matou também.” Sinto, meu caro Vom, que daí deste lugar pequenino as coisas são vistas com um certo desleixo, a situação por aqui é precária, ouvi dizer que mais ao oeste pessoas passam fome, não possuem água nem mesmo para cozinhar seus alimentos tão escassos que perecem ao desuso. Gostaria também de dizer que talvez seja um engano taxar as coisas como norte, sul, leste e oeste... Pensando bem, vivemos em um globo, um geoide, uma esfera, enfim, independente da direção que você percorra, a chance de retornar ao ponto de partida é muito grande. Levando em consideração os efeitos que isso poderia causar na malha espaço-tempo e alguns infortúnios pelo caminho a chance de que tudo retorne ao seu lugar é muito e fatalmente grande. Não há norte, nem leste, nem sul e nem oeste; O que sempre haverá é a frente. Quando observamos algo, temos a percepção de que existe profundidade, mas sempre observamos tudo em 2 dimensões, nossos olhos humanos não são capazes de perceber 3 dimensões. Pode parecer besteira o que digo, meu caro Vom, mas se observar daí da sua janela o nosso planeta, verá uma esfera? Verá um círculo, como uma chancela, como a mesma chancela que estampa o envelope desta carta que chega até você pelo menos 10 anos atrasada. Sabe que estes são problemas mundanos nos dias de hoje, a realidade se choca com a ciência e as pessoas simples, mortais, insistem em querer explicações óbvias demais e optam por acreditar nos absurdos. Volga hoje acordou resfriado, miou pra lá, olhou para a tigela cheia, cheirou o leite e pulou na mesa do café, serviu-se de uma xicara, optou por não colocar açúcar, pediu meu cachimbo emprestado e está lá, admirando a neve na janela enquanto degusta seu cafezinho e aquele tabaco que colhemos no último verão. Verão aquele que tenho uma certa saudade, montávamos quebra-cabeças, riamos da TV, bebíamos um bom vinho. Hoje seria um dia de memórias, mas algumas coisas eu fiz questão de esquecer, o dia em que você foi embora na capsula Soyuz e simplesmente ficou sem mandar notícias por anos e anos. As meninas que também foram embora e as vezes ligam para saber como estamos. Queria dizer que sinto saudade de casa, mas ao mesmo tempo um grande amigo das terras altas dizia “Bidh an dachaigh agad far a bheil do chridhe” – “Sua casa será onde o seu coração estiver” – Logo, vejo que não tenho uma casa, já que todos se foram, restou o Volga, ele que as vezes passa pela sala com seus miados contundentes de que guardou muita mágoa de todos vocês, esses dias ele disse em alto e bom som que vai embora daqui, que as malas já estavam prontas, ele só precisava de um plano para levar a nossa vaca com ele para garantir o estoque de leite para o inverno. No mais, ano que vem dizem que o tempo melhora, só não sei para quem e por que insistem em prever o futuro, o tempo, o clima. Os seres humanos são seres fascinantes até certa idade, são irritantes quando descobrem que aos gritos se consegue qualquer coisa, são ainda mais irritantes quando entendem que chorar demonstra fraqueza dentro de si e desperta cuidados nos que estão ao redor. Então, meu caro Vom, entendemos que este fascínio também é perecível e que nós acabamos nos esquecendo muito facilmente do que nos encantou para manter uma chama acesa. Quando fecho os olhos meu irmão, vejo o caminho sem volta que nos enfiamos e que precisamos resolver, penso na veracidade de minhas memórias, cada vez mais obtusas, lembro-me de como éramos felizes brincando na neve, aquele balanço feito pelo caseiro para que nós pudéssemos balançar até tocar o céu. O velho carvalho, os moinhos, o vento que soprava pelas frestas do celeiro, os animais que se abrigavam do frio e se escondiam dos lobos que vez ou outra tentavam a sobrevivência. A vida nunca foi fácil, mas nunca foi tão divertida, não é mesmo meu irmão? As vezes me pego olhando nossos retratos na parede da cozinha enquanto paro para pensar na vida, sento-me no balcão e passo alguns minutos observando a brasa do fogão e lembro do dia que balançamos tanto que você chegou a tocar o céu, as brasas do fogão se tornaram as labaredas do foguete. É, meu caro Vom, as coisas nem sempre são como deveriam ser, ou as vezes são, depende do ponto de vista no qual nos encaixamos. Eu gostaria de falar muitas outras coisas, mas caíram no esquecimento. Fique bem meu amigo, meu irmão, meu companheiro. Volga foi brincar lá fora.

“Até mesmo os lobos que cruzam o branco deserto enevoado podem por a vida em risco se não fosse o instinto. Observar não compreende em apenas observar de forma propriamente dita, mas se faz necessário entender que nem tudo pode ser escolhido, um impulso de olhar para um lado e não para o outro, esta deliberação automática e instintiva nos faz compreender e observar sempre a metade de um dia.”

Faber Krystie McDonnadan




sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A Pólis e Apolo - Um manifesto

Somos fortes, somos individuais e prezamos apenas pela nossa sobrevivência, sobrevivência essa de um conceito falso, já que a maior parte de nós ainda vive com os pais e não tem a necessidade de pagar aluguel e contas básicas como alimentação, transporte e vestimentas. Alguns de nós tem seus empregos, são até bem-sucedidos, mas jamais escapam da sombra dos pais, estes que com o auge dos 40, 50 ou 60 anos ainda provém o sustento de uma família. O dinheiro falta, não temos controle financeiro, não precisamos dele, somos nós que mandamos no nosso dinheiro e compramos o que queremos, gastamos tudo com o que nos convém. Sejam bebidas alcoólicas, roupas de grife, sapatos, tabaco, drogas ilícitas e afins. Muitos de nós possuem pequenos fetiches por coisas ditas de nerd, ou então o termo nerd foi adquirido por alguns de nós que se autodenominam nerds, que fazem parte da cultura nerd, da cultura gamer, da cultura de algo tecnológico. Amamos livros que talvez nunca leiamos, ou somos escritores de um mundo que não consome a nossa escrita, somos seres viventes de mundos duais, nossos álter-egos sobrevivem virtualmente em lugares onde postamos fotos com filtros, apreciamos um mundo não palpável que serve de alicerce à depressão de uma geração toda. A confusão mental que se avizinha a passos largos se transforma logo em músicas de letras vazias, riffs rápidos, flows contínuos e strings de curto alcance. Somos aqueles que nunca foram a uma guerra, que nunca ouviram um tiro de canhão disparado por um tanque ou ainda mais, nunca vimos o próprio tanque explodindo após uma descarga de bombas vindas do céu através de um avião e não estamos nem um pouco preocupados com isso. Queremos a paz. Queremos que o mundo seja tão belo quando as fotos que vemos no Pinterest. A guerra é interna, lutamos contra nós mesmos, dentro de nossas cabeças. Sentimentalmente somos carentes de afeto ou simplesmente ignoramos este fato nos escondendo nas sombras de um sorriso semicerrado pela bebedeira ou efeito de algo. Passamos a semana esperando pela sexta-feira, ansiamos pelo sábado e morremos novamente no domingo. Somos a escória, somos os ladrões, somos os reclusos, somos os culpados pela sociedade marginal, pois, por incrível que pareça, nós mesmos éramos os marginais e hoje somos os que consomem o mundo, somos a mão de obra e amanhã, se ele chegar, seremos os detentores do dinheiro, teremos nossas contas, mas não teremos nossas casas. No nosso mundo não há divisas, não há fronteiras, seja ele virtual ou real, temos uma capacidade de mutação e adaptação tão grande, que isso nos liberta das algemas do pertencimento mútuo da terra. Somos o próprio vento, que sopra pelo vão e traz o frescor da manhã de mais um dia. Este que sempre será a dúvida, o amanhã virá? Isso significa que cada dia é único e que todos os dias podem ser os últimos mas, isso não significa que não devemos acreditar em um mundo melhor. Somos os seres decadentes do século presente, vivemos em busca de algo que não sabemos o que é, de onde vem e para onde vai. Temos ciência apenas do quanto custa e alguns nem isso, estes nasceram em berço de ouro e não precisarão se preocupar com nada a vida toda. Haverá talvez a necessidade de adquirir uma boa educação para que se perpetue a sua própria espécie, estes são os ditos comuns que em geral repetem sempre o mesmo ciclo - nascimento, aprendizado, trabalho, procriação e morte. - Dentro destas fases existem os sentimentos afetuosos que o mantem nesta linha rumo ao infinito ciclo de perpetuação da espécie dentre o sistema no qual somos apresentados. É mister de como o planeta sustentará toda uma geração de pessoas que no final das contas não conseguirão sustentar o próprio sistema. Este entrará em colapso e cairá em desuso como uma bituca de cigarro ou como uma resistência de um dispositivo de vapor. A tecnologia vencerá, o ser humano perecerá em doses homeopáticas restando accounts, characters, e-mails, IDs e skins. Somos os virtuais, os eternos, os binários, não-binários, os sem gênero e os generais. A nossa guerra, mais uma vez, é contra nós mesmos. O futuro não é o agora e ele talvez nem exista neste lapso temporal causado pela própria inercia constante em nossos corações.




quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Drogas, conteúdo sexual e linguagem imprópria

A casa estava cercada, era noite, quase dia, na linha do horizonte o Sol se erguia entre as plantas mais altas. Fizera frio na madrugada, o que também era um fator de dificuldade para os que estavam ali aguardando a abertura das portas já que um nevoeiro tomava conta dos arredores. O sentimento de solidão unido ao cansaço do trabalho apenas reiterava aquele nevoeiro que insistia em tomar conta da área externa, do telhado e passar também pelas frestas da janela e das portas. Tudo estava gelado e o fogo da lareira sem alimento sobrevivia em uma brasa, pequena, cintilante com um brilho calmo, digno de algo que esteve ali a noite inteira e necessitava-se findar. As poltronas velhas rebatiam o ar frio que entrava pelas frestas e até os animais que por hora se aqueciam em suas posições, estavam procurando uma saída, mas não havia movimento naquele lugar. A névoa permanecia intacta como se fosse uma entidade maior, como se fosse algo consciente.

Não havia ninguém em casa, não havia calor, nem fogo e muito menos luz. No limiar de uma existência, um cachimbo deixado ali há décadas, o fumo dentro dele já sofrera com a erosão e deterioração orgânica. As escadas, o teto, o abismo. Dentro de cada fibra da madeira que compunha aquela cabana existia uma história diferente e desde a muito tempo nada mais acontecia. Quando por um momento a porta abriu, uma fresta, todos ali ouviram o ranger das dobradiças enferrujadas e pelo movimento do trinco que estava emperrado a tanto tempo.

O caçador por sua vez acordava observava a névoa que cercava seu sítio, observava que todos tinham ido embora e ainda assim as memórias estavam guardadas em cada fibra da madeira de sua cabana. Não havia luz suficiente, não havia calor suficiente, não havia trinco, nem porta, a névoa que entrava pelas frestas estava ali por um motivo. A arma que atirava pela última vez encerrava um ciclo e delimitava ali sua dor, seu arrependimento. Seres sem rosto e nem roupas caminhavam em direção a entrada buscando abrigo, os animais que compunham a cena por hora estavam empalhados, surgiam em busca de suas cabeças. Os homens e mulheres aguardavam ali como quem aguarda em uma estação. Estavam sem bagagem, apenas aguardavam errantes pelo momento de cruzar os trilhos.

Naquele momento o céu abriu e a névoa se foi.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O Juízo

Os gritos de socorro que se ouvia ao longe entre os cânions repletos de areia e solidão a lua pairava no ar como se flutuasse entre o túmulo e a grama verde que cobria o cemitério no qual se instalavam os bunkers nos quais muitos se salvavam.

Salvação era a ideia primordial antes que qualquer coisa se chocasse com a realidade mórbida dos alienígenas que visitavam constantemente o planeta. Estes tinham uma certa resiliência a aterrissar suas naves e se deparar com a hostilidade que poderia ocorrer em um lugar onde misseis apontavam para os iguais. Era de fato complexo compreender o porque daquela destruição. Por vezes clamavam por soberania e outras vezes clamavam por misericórdia, a questão era o entendimento entre ambos que já não falavam a mesma língua ou até mesmo não se interessavam em compreender o que sentia cada um.

O tumulo estava vazio, era apenas uma ideia que a cada pá de terra que se colocava ali se tornava também o fim de qualquer chance de paz. O tumulo significava o fim, ou talvez o reinicio de algo que se via incrivelmente obsoleto. Na verdade, enterrar pessoas também fazia com que o próprio solo se tornasse algo tóxico que contaminava os recursos naturais nos quais se nutriam os seres humanos. Algo que não se entendia era exatamente o porque os seres não tinham a ideia de que modificavam os meios que se instalavam com suas palavras e ideais. O desentendimento tornava tudo mais obscuro quando as ações não condiziam com as metas de vida, tudo era para o presente e tudo se fazia obsoleto com o passar do tempo. O egoísmo humano se tornava a produção mais tóxica que os próprios corpos enterrados.

Claro que alguns diziam também que a matéria orgânica nutria o solo e fazia com que ele se tornasse melhor, não estavam tão errados, mas, até que ponto realizariam plantios em solos ditos sagrados ou mesmo que tudo aquilo fosse pelos ares não seria uma boa sacada manter tudo como estava. O silencio fúnebre era cortado pela liberdade na qual o mesmo espirito que cobrava caro pela estadia também falava sobre como se ofertar o próprio desdém.

Eram espíritos errantes, quase que em um jogo de batalha naval onde qualquer passo se tornaria o motivo para a explosão. Durma bem, meu anjo, ninguém ali afinal gostaria de dormir sozinho, muito pelo contrário, seria até mais seguro que as idas e vindas das rotações do pequeno planeta azul fossem mais lentas e nas quais a vida seria menos incompleta se não fosse a resiliência extraterrestre. A humanidade estava em colapso e não seria inteligente provar-se existente no mundo que seguia a deriva e numa de suas entradas o meio humano era protegido por uma densa camada chamada atmosfera, mas, afinal, estávamos protegidos ou presos?

Nos é mais interessante pensar que estamos sozinhos ou mais tenebroso arriscar um palpite que estamos acompanhados nesta jornada clássica de uma nave que atravessa os tempos em busca de um lugar seguro para a espécie? A vida será perpetuada, desde que o ser humano não se deteriore e não se coloque a prova de vida pois, a cada segundo vivido, notamos que a vida se vai e que muitas vezes o piscar de olhos astronômico sejam vidas inteiras dos seres que sobrevivem no planeta azul.

A questão maior que ainda paira no ar como um beija-flor, por que estamos aqui e qual o propósito? Se a vida é tão curta e se vivemos no meio-fio todos os dias em busca de sobrevivência, por que fazemos tudo tão mais difícil? Mais uma vez sugere-se o egoísmo dos universos que convivem, cada um luta pela própria sobrevivência da forma que pode e no fim de tudo nunca deixamos de poluir.

Os anos se passam e nós apenas nos reinventamos. Maquinas, plantas, pulso, agonia, sentimentos, psique, jogos e feridas. Cada um nesta vida, dá o que pode e o que tem, mas nem todos se esforçam para manter a sanidade mental alheia, o metal, o conforto, a densidade da camada atmosférica, estes são inigualáveis pontos a se pensar todos os dias se realmente são necessários.