Meu caro Vom, sempre inicio nossas cartas com este prefixo, já que tantas as vezes nos obrigamos a esquecer. O esquecimento parece uma ligeira defesa do nosso cérebro para que não guardemos tantas coisas as quais as vezes não possamos carregar. Como diria um grande amigo em um de seus desconexos textos: - “Te vejo neste contexto desde sua partida, como alguém que viaja e não volta, não tive nenhuma opção a não ser aguentar os mundos nas costas, daquele dia em diante tudo o que eu pude fazer foi suportar e entendo que suportarei até o momento em que passarei este fardo a outra pessoa que terá a minha imagem e semelhança, apesar de tuas loucuras, havia uma bondade infinita dentro deste seu coração, apesar da dureza, havia a compreensão, apenas sua teimosia me matava aos poucos assim como te matou também.” Sinto, meu caro Vom, que daí deste lugar pequenino as coisas são vistas com um certo desleixo, a situação por aqui é precária, ouvi dizer que mais ao oeste pessoas passam fome, não possuem água nem mesmo para cozinhar seus alimentos tão escassos que perecem ao desuso. Gostaria também de dizer que talvez seja um engano taxar as coisas como norte, sul, leste e oeste... Pensando bem, vivemos em um globo, um geoide, uma esfera, enfim, independente da direção que você percorra, a chance de retornar ao ponto de partida é muito grande. Levando em consideração os efeitos que isso poderia causar na malha espaço-tempo e alguns infortúnios pelo caminho a chance de que tudo retorne ao seu lugar é muito e fatalmente grande. Não há norte, nem leste, nem sul e nem oeste; O que sempre haverá é a frente. Quando observamos algo, temos a percepção de que existe profundidade, mas sempre observamos tudo em 2 dimensões, nossos olhos humanos não são capazes de perceber 3 dimensões. Pode parecer besteira o que digo, meu caro Vom, mas se observar daí da sua janela o nosso planeta, verá uma esfera? Verá um círculo, como uma chancela, como a mesma chancela que estampa o envelope desta carta que chega até você pelo menos 10 anos atrasada. Sabe que estes são problemas mundanos nos dias de hoje, a realidade se choca com a ciência e as pessoas simples, mortais, insistem em querer explicações óbvias demais e optam por acreditar nos absurdos. Volga hoje acordou resfriado, miou pra lá, olhou para a tigela cheia, cheirou o leite e pulou na mesa do café, serviu-se de uma xicara, optou por não colocar açúcar, pediu meu cachimbo emprestado e está lá, admirando a neve na janela enquanto degusta seu cafezinho e aquele tabaco que colhemos no último verão. Verão aquele que tenho uma certa saudade, montávamos quebra-cabeças, riamos da TV, bebíamos um bom vinho. Hoje seria um dia de memórias, mas algumas coisas eu fiz questão de esquecer, o dia em que você foi embora na capsula Soyuz e simplesmente ficou sem mandar notícias por anos e anos. As meninas que também foram embora e as vezes ligam para saber como estamos. Queria dizer que sinto saudade de casa, mas ao mesmo tempo um grande amigo das terras altas dizia “Bidh an dachaigh agad far a bheil do chridhe” – “Sua casa será onde o seu coração estiver” – Logo, vejo que não tenho uma casa, já que todos se foram, restou o Volga, ele que as vezes passa pela sala com seus miados contundentes de que guardou muita mágoa de todos vocês, esses dias ele disse em alto e bom som que vai embora daqui, que as malas já estavam prontas, ele só precisava de um plano para levar a nossa vaca com ele para garantir o estoque de leite para o inverno. No mais, ano que vem dizem que o tempo melhora, só não sei para quem e por que insistem em prever o futuro, o tempo, o clima. Os seres humanos são seres fascinantes até certa idade, são irritantes quando descobrem que aos gritos se consegue qualquer coisa, são ainda mais irritantes quando entendem que chorar demonstra fraqueza dentro de si e desperta cuidados nos que estão ao redor. Então, meu caro Vom, entendemos que este fascínio também é perecível e que nós acabamos nos esquecendo muito facilmente do que nos encantou para manter uma chama acesa. Quando fecho os olhos meu irmão, vejo o caminho sem volta que nos enfiamos e que precisamos resolver, penso na veracidade de minhas memórias, cada vez mais obtusas, lembro-me de como éramos felizes brincando na neve, aquele balanço feito pelo caseiro para que nós pudéssemos balançar até tocar o céu. O velho carvalho, os moinhos, o vento que soprava pelas frestas do celeiro, os animais que se abrigavam do frio e se escondiam dos lobos que vez ou outra tentavam a sobrevivência. A vida nunca foi fácil, mas nunca foi tão divertida, não é mesmo meu irmão? As vezes me pego olhando nossos retratos na parede da cozinha enquanto paro para pensar na vida, sento-me no balcão e passo alguns minutos observando a brasa do fogão e lembro do dia que balançamos tanto que você chegou a tocar o céu, as brasas do fogão se tornaram as labaredas do foguete. É, meu caro Vom, as coisas nem sempre são como deveriam ser, ou as vezes são, depende do ponto de vista no qual nos encaixamos. Eu gostaria de falar muitas outras coisas, mas caíram no esquecimento. Fique bem meu amigo, meu irmão, meu companheiro. Volga foi brincar lá fora.
“Até mesmo os lobos que cruzam o branco deserto enevoado
podem por a vida em risco se não fosse o instinto. Observar não compreende em
apenas observar de forma propriamente dita, mas se faz necessário entender que
nem tudo pode ser escolhido, um impulso de olhar para um lado e não para o
outro, esta deliberação automática e instintiva nos faz compreender e observar
sempre a metade de um dia.”
Faber Krystie McDonnadan
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