Nas vastas entranhas de um mundo imprevisível se vai mais uma
alma que se solidariza com o tempo. As nuances de um fato sempre acarretam no
resquício de uma vida inteira e a partir de um lapso temporal. Somos
responsáveis por um mundo cruel, sem vida, desonesto, pecaminoso e calado. O
poeta está morto e junto com ele foram levadas todas as esperanças de uma vida.
Ter filhos, talvez, ser reconhecido, talvez, ser alvo de críticas, talvez, ser
alvo dos rifles e das bombas, talvez, talvez, talvez e foi assim que se foi, na
satisfação de uma dúvida eterna na qual subjugava as forças externas. A dúvida
nunca foi sanada e o próprio nem ao menos arriscou o salto no precipício escuro
e vão.
Se matou? Jamais tiraria a própria vida. Foi morrendo aos
poucos, por dentro, adentrando uma resolução vital na qual se entregou ao mundo
e decidiu não modificar o meio em que vivia. Se moldar a tudo e a todos o fez
perder o mais importante, o amor-próprio. Um dia se percebeu em sua casa, rodeado
de tudo o que sempre quis e ao mesmo tempo se viu farto de ser alguém que se
molda. Num acesso de raiva, com uma faca empunhada em sua mão direita descobriu
o prazer que os cortes traziam, não um prazer sexual ou carnal mas, um prazer
que devolvia a si uma vida inteira. Ao levantar-se da cama, olhou o sol que
batia na janela e se refratava em uma luz intensa em meio aos livros e papeis
amassados no chão.
No rádio, um piano ascendia uma melodia tão bela quanto seus
cortes, ele realmente não sentia dores agudas e o sangue pingando no caminho até
a cozinha era acompanhado pelo piano, pelo sangue e pela vontade de tomar um
café forte. Encontrando as garrafas de bebidas, preferiu livrar-se da inconsciência
e obter de uma vida o máximo que ela poderia oferecer. Sentiu mais raiva ao
notar que uma mosca consumia o açúcar e por nojo, o café seria amargo. Acendeu
o fogo, buliu com a água ao ver em seu reflexo os dentes amarelados e a pele
pálida, seus olhos continham o medo, sentia que dali para a frente iniciaria a
tremedeira e todo o processo de contenção de energia. Percebeu também que o
sangue no chão era pútrido e o cheiro tomava a casa percorrendo todos os cantos
do quarto, da sala, do banheiro, enfim, todos os cômodos foram alvo daquela
sensação, a mesma que fora sentida no inicio de tudo, que ao unir-se com a
vontade transformou-se na catástrofe. O céu azul da primavera anunciava um funeral.
O céu azul de uma primavera anunciava o funeral de mais um
doente, de mais um pai, um irmão, um avô. O futuro é incerto, o passado é
implacável, o presente cabe a nós e o lapso temporal sempre anuncia mais uma
primavera, mais um céu azul de primavera. O poeta estava morto, enquanto a casa
toda fedia a sangue, café e pó. Ele degustou o café, amargo, sentiu a dor de um
rasgo em sua pele e compreendeu que o tempo nunca aumenta, ele apenas se vai e
se foi, como o vento que precede uma tempestade ou como o mar que recua antes
de uma onda gigante.
Em suas anotações, as últimas, ele desenhou um menino que
ganhava o mundo, desenhou um homem que retornava a sua terra natal e que
encontrava seu grande amor. Logo após os desenhos, estava escrito em letras
rabiscadas algumas palavras:
“Cá deste lado, o mundo ainda plana, sem motor.
Cá deste lado existe a incompreensão.
Cá deste lado a vida não se assanha, sem louvor.
Cá deste lado o nada existe então.”
O poeta estava morto e no chão o sangue se tornava pó, o
corpo se tornava pó, a casa em si com o tempo ruiu. O piano já sem tempo,
parou. Os papéis ficaram por mais um tempo até que a mesma chuva que levou o telhado
da casa, também levou as lembranças. Ali naquele lugar ergueu-se uma árvore das
entranhas do poeta e esta cresceu tão rápido que ninguém mais lembrava o que
havia ali. Esta árvore sobreviveu as guerras, as secas, as tentativas de
urbanização e as pragas que passaram por ali. Sobreviveu também o poeta, que agora
árvore, observava tudo e todos os que passavam por aquela rua e com graça ainda
podia ouvir a musica imortalizada pelo rádio ouvido na sorveteria da frente, na
padaria ao lado e na casa da família que se instalou ao lado do parque em que
se situava.
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