domingo, 12 de julho de 2020

O poeta morto - Temporal


Nas vastas entranhas de um mundo imprevisível se vai mais uma alma que se solidariza com o tempo. As nuances de um fato sempre acarretam no resquício de uma vida inteira e a partir de um lapso temporal. Somos responsáveis por um mundo cruel, sem vida, desonesto, pecaminoso e calado. O poeta está morto e junto com ele foram levadas todas as esperanças de uma vida. Ter filhos, talvez, ser reconhecido, talvez, ser alvo de críticas, talvez, ser alvo dos rifles e das bombas, talvez, talvez, talvez e foi assim que se foi, na satisfação de uma dúvida eterna na qual subjugava as forças externas. A dúvida nunca foi sanada e o próprio nem ao menos arriscou o salto no precipício escuro e vão.

Se matou? Jamais tiraria a própria vida. Foi morrendo aos poucos, por dentro, adentrando uma resolução vital na qual se entregou ao mundo e decidiu não modificar o meio em que vivia. Se moldar a tudo e a todos o fez perder o mais importante, o amor-próprio. Um dia se percebeu em sua casa, rodeado de tudo o que sempre quis e ao mesmo tempo se viu farto de ser alguém que se molda. Num acesso de raiva, com uma faca empunhada em sua mão direita descobriu o prazer que os cortes traziam, não um prazer sexual ou carnal mas, um prazer que devolvia a si uma vida inteira. Ao levantar-se da cama, olhou o sol que batia na janela e se refratava em uma luz intensa em meio aos livros e papeis amassados no chão.

No rádio, um piano ascendia uma melodia tão bela quanto seus cortes, ele realmente não sentia dores agudas e o sangue pingando no caminho até a cozinha era acompanhado pelo piano, pelo sangue e pela vontade de tomar um café forte. Encontrando as garrafas de bebidas, preferiu livrar-se da inconsciência e obter de uma vida o máximo que ela poderia oferecer. Sentiu mais raiva ao notar que uma mosca consumia o açúcar e por nojo, o café seria amargo. Acendeu o fogo, buliu com a água ao ver em seu reflexo os dentes amarelados e a pele pálida, seus olhos continham o medo, sentia que dali para a frente iniciaria a tremedeira e todo o processo de contenção de energia. Percebeu também que o sangue no chão era pútrido e o cheiro tomava a casa percorrendo todos os cantos do quarto, da sala, do banheiro, enfim, todos os cômodos foram alvo daquela sensação, a mesma que fora sentida no inicio de tudo, que ao unir-se com a vontade transformou-se na catástrofe. O céu azul da primavera anunciava um funeral.

O céu azul de uma primavera anunciava o funeral de mais um doente, de mais um pai, um irmão, um avô. O futuro é incerto, o passado é implacável, o presente cabe a nós e o lapso temporal sempre anuncia mais uma primavera, mais um céu azul de primavera. O poeta estava morto, enquanto a casa toda fedia a sangue, café e pó. Ele degustou o café, amargo, sentiu a dor de um rasgo em sua pele e compreendeu que o tempo nunca aumenta, ele apenas se vai e se foi, como o vento que precede uma tempestade ou como o mar que recua antes de uma onda gigante.

Em suas anotações, as últimas, ele desenhou um menino que ganhava o mundo, desenhou um homem que retornava a sua terra natal e que encontrava seu grande amor. Logo após os desenhos, estava escrito em letras rabiscadas algumas palavras:

“Cá deste lado, o mundo ainda plana, sem motor.
Cá deste lado existe a incompreensão. 
Cá deste lado a vida não se assanha, sem louvor.
Cá deste lado o nada existe então.”


O poeta estava morto e no chão o sangue se tornava pó, o corpo se tornava pó, a casa em si com o tempo ruiu. O piano já sem tempo, parou. Os papéis ficaram por mais um tempo até que a mesma chuva que levou o telhado da casa, também levou as lembranças. Ali naquele lugar ergueu-se uma árvore das entranhas do poeta e esta cresceu tão rápido que ninguém mais lembrava o que havia ali. Esta árvore sobreviveu as guerras, as secas, as tentativas de urbanização e as pragas que passaram por ali. Sobreviveu também o poeta, que agora árvore, observava tudo e todos os que passavam por aquela rua e com graça ainda podia ouvir a musica imortalizada pelo rádio ouvido na sorveteria da frente, na padaria ao lado e na casa da família que se instalou ao lado do parque em que se situava.


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