quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Crescei e multiplicai-vos

Adentrando a simulação, eram inclusas complexidades durante os planos base. No começo tudo se iniciava com células simples que se dividiam e multiplicavam perante sua adaptação ao meio em que foram inseridas. Nenhuma evolução, eles diziam, ocorrerá sem dor. Assim se fez, para multiplicar era necessário se dividir, diminuir, cortar, dilacerar, nada se criava do nada, tudo era inserido por algum motivo, ou por algum desejo, ou, além disso, por algum castigo, mas, como castigar algo que não possui formas de sentir que está de fato sendo castigado? Para que uma ação faça sentido, ela deve ser validada pelo seu receptor, a não ser que o ator esteja brincando sozinho com suas ideias mirabolantes em um monologo estranho em um palco sem plateia, sem luz, sem som e sem texto, o que anularia de fato a simulação.

A questão é que de unicelular, se tornaram multicelulares e daí em diante foram inseridos tantos quesitos parâmetros como número de patas, revestimento, tipo de alimentação, tipo de respiração, diurno ou noturno... Eram tantos parâmetros dentro de um lugar só, mas tudo parecia estar em paz enquanto a evolução continuava por tantos outros motivos e é claro, pelo bem da simulação, tudo se criava e se adaptava de tantas formas que era iminente a necessidade de se resetar a entropia.

Nada como por acaso um meteoro ser arremessado na simulação para que ela se refizesse, lentamente. (Como se houvesse uma escolha, me entende?)

Tudo continuava se adaptando mesmo após uma catástrofe daquele tamanho, o que com certeza poderia ter extinguido tudo. Em um sopro, a simulação estaria perdida, o que significa que o botão de reset deveria ser pressionado para se iniciar uma nova simulação, talvez em outro lugar, talvez sem meteoro, talvez sem unicelulares, talvez sem nada do que foi incluído anteriormente, começar do zero. O problema foi esse, após o cataclisma, foram abandonados pois com certeza não haveria como se sobreviver ou se adaptar.

Pois bem, os seres que aqui ficaram se adaptaram a nova atmosfera, ao novo formato global, ao clima e tantas outras coisas, apenas não compreenderam muito bem o novo pacote de atualizações instalado automaticamente pelo sistema operacional. Além de novos tipos de seres, o pacote de expansão ainda previa a criação de novos parâmetros sem a necessidade de incluí-los automaticamente. A sacada foi tão potente que logo a simulação ganhou um “Q” a mais da mais pura e sublime insalubridade. Com o avanço de tantas coisas uma raça foi se sobressaindo em relação as outras por se considerar inteligente, o plano base, se intensificando, se adaptou tanto em relação aos outros planos que recebeu um prêmio “honoris causa” por ser em tantos milhões de anos o primeiro a conter vida (agora era esse o nome que davam a ação de abrir os olhos, respirar, se alimentar e dormir) “inteligente”, é claro que esse prêmio foi dado pelos próprios seres “inteligentes” a eles mesmos.

É claro que estes seres tinham algum problema e logo foram incluídos automaticamente no pacote de expansão, os parâmetros guerra e dinheiro (e por consequência o parâmetro pobreza). Assim também se criou o parâmetro fome (este veio com o parâmetro dor no meio do umbigo, um parâmetro que acompanhava os seres mamíferos, um parâmetro para designar os seres que do nascimento ao final da infância poderiam praticar a ação de mamar no seres dotados do parâmetro fêmea, o umbigo era dado ao ser que nascia a partir do ser mamífero, fêmea por uma espécie de acesso chamada cordão umbilical, daí o nome umbigo.)

Dentre tantas as mazelas que esta simulação (agora automática) traria, ainda haveriam outros seres que não tinham muita inteligência e acabavam nas mãos dos agora predadores “inteligentes” que inventaram as queimadas, a pesca, caça e coleta, máquinas movidas a petróleo “expelidoras” de carbono entre tantas as outras mazelas que a “inteligência” traria para os seres que agora viviam na simulação. Um dia, após tanto tempo com a experiência em Fast Foward, enquanto realizavam a faxina anual no laboratório, encontraram algo tão tenebroso que se contentaram muito com esse novo experimento criado, ao avistar tantos parâmetros juntos, realmente passaram a compreender que o desenvolvedor do pacote de expansão automático não estava de brincadeira, enquanto todos ainda sem fôlego observavam tudo aquilo, ouviu-se lá do fundo da sala, o responsável pela faxina: - Quanta crueldade. – Todos riram ao mesmo tempo, jogaram o tecido em cima da tela e foram se retirando, exceto o analista, este resolveu verificar os gráficos e parâmetros.

Dentre eles, eram encontrados todos os tipos de variáveis, variações políticas, cor de pele, crença, honra, raça, sindicato, posição sexual preferida, prato preferido, corte de cabelo, doença crônica, naturalidade, etc. 

A única variação que todos os seres tinham a mais pura certeza que haveria de selar todos os indivíduos era a liberdade, este um conceito muito amplo e utópico para se discutir, quiçá para prova-lo como um manjar. 

No fim já estavam todos vendidos, ao nascer, como cães em um petshop. 


Vox Populi (Beta Zi'nini Universe)


sábado, 1 de outubro de 2022

Tous les Jours - 05

 O Juca era verdadeiramente um cara bem viajado, tão viajado que em uma dessas conversas de balcão deixou escapar uma de suas viagens pela Ásia, logo no início, quando decidiu viajar por conta de um intercâmbio para a China. Fez faculdade e etc, o cara não era fraco não. Ele contava:

- Por vários dias passei sozinho andando por aí, a capital chinesa, Pequim é pra lá de variada e tem muita gente andando pra lá e pra cá, o modo asiático de vida é meio controverso, eles fazem praticamente as mesmas coisas que os americanos e se dizem comunistas.

O Léo gostava dessas conversas, viagens e etc. Ele só não se abria muito quando a conversa era sobre mulher, o moleque comia quieto, bem quieto. Enfim, questionava:

- Mas lá era muito frio?

Juca respondia:

- Acho apenas que o inverno é um pouco menos rigoroso que em algumas cidades que o inverno é mais forte, como Vancouver ou Cleveland, mas, claro que quem não gosta de uma friaca, que procure uma cidade mais ao sul, o litoral é feio, repleto de portos e a poluição é um grande diferencial negativo para as cidades portuárias como Zhanjiang ou Shenzeng. Hong Kong é tranquilo mas, é um povo meio esquisito. Quanto mais ao norte, mais frio, Taiwan é caro demais, Singapura nem se fala, tudo em dólar.

O Antunes queria saber mesmo era do mulheril:

- Fala das mina pô, as chinesas são boas?

Juca não ligava muito pro Antunes e continuava a falar com o Léo:

- Depois que iniciei meus estudos em comercio exterior na universidade de Ningbo (região próxima a Xangai), consegui um emprego nessas empresas de manufatura e e-commerce, essas empresas que vendem baratinho e enviam para o mundo todo seus produtos a preço, literalmente, de banana.

- Falam que na China tem trabalho escravo, é verdade isso?

- As condições nunca eram das melhores, mas, pagavam em dia e o pessoal lá era bem legal. Um dos meus colegas de trabalho, o Lee

O Antunes:

- Ah isso é balela, nome comum pra caralho, você viu num filme, vai? Lee?

- Parece clichê, mas eu juro que ele se chamava Lee, apareceu com um espremedor de suco, essas bugigangas que a gente só vê em sites como Aliexpress, Alibaba, Shopee e afins. Aquele aparelho era fantástico, silencioso e para a minha surpresa era também a bateria, ou seja, suquinho tirado da fruta na hora em que se consumia, tudo o que se precisava era uma caneca, copo ou algum recipiente e claro, as frutas.

O Antunes já fazia uma cara meio assim enquanto olhava para o barmen:

- Aaaah, que mané suquinho Juca! Não tinha uma maquina que fazia cerveja? Essa era a boa! Ou Whisky, pultz, aí sim! Um Ballantines 15 anos direto da fonte. hehe

O Barmen fazia os cálculos de como é que se fazia whisky 15 anos sem esperar 15 anos. Devolvia para o Antunes que apenas ouvia a história.

- Sempre na hora do lanche, lá não tinha horário de almoço, trabalhava da hora que chegou até a hora de ir embora e a hora de ir embora nunca era de fato sempre no mesmo horário. Lá nunca era um diferencial “dar o sangue” pela empresa, quem não dava o sangue era despedido e pronto, é de fato uma visão do Comunismo, as pessoas vivem pelo trabalho e pelo Estado mas, que fique claro, o partido é Comunista, a China não.

Antunes interrompia de novo:

- O QUE? Comunistas? Tô fora! Esse povo aí come criancinha!

O Léo assustado com a fala do Antunes apenas olhava para os lados, ele acreditava em tudo o que contavam. O Juca seguia:

- Enfim, na hora do lanche percebi que tinha esquecido meu refrigerante de todos os dias e a máquina estava com o estoque zerado, a empresa que fazia a manutenção tinha se esquecido da gente.

O Antunes já previa a história toda:

- Tá, aí vai dizer que o Lee Comunista te emprestou a máquina dele e vocês tiveram uma linda amizade!

Léo sorriu.

Juca seguia:

- O Lee observou que eu comia meu sanduiche a seco e questionou se eu não gostaria de um pouco de suco ou chá, ele tinha bastante, eu aceitei um copo e para a minha surpresa ele tinha algumas laranjas ao colocar na máquina espremedora (ele estava louco para mostrar a novidade, obviamente) me dizia como aquele aparelho mudou a vida dele, como ele se tornou mais saudável sem ter tanto trabalho.

Mais uma vez o Antunes atrapalhou:

- Ah, pronto, agora virou história de coach essa porra, nome genérico, história de superação, ponto chave, cidade que ninguém esteve...

O Juca ainda tentava contar, e desta vez se virou para o Antunes:

- Dava pra ver que ele estava mais esbelto e ao perguntar, confirmei também que ele estava malhando na academia que ficava próxima a empresa, ele ia lá todos os dias após o expediente.

- Ah, pronto, agora a história está completa, suquinho e academia...

O Juca estava impaciente...

- Deixa eu acabar???

Antunes se calou e o Léo fez sinal que sim.

- Uns 3 dias depois, passando por uma barraca de frutas, verifiquei que eles não só vendiam as tais laranjas como também a tal maquina de espremer, comprei as laranjas apenas, não queria parecer invejoso nem nada do tipo já que lá eles viam a inveja como algo estarrecedor, e cheguei lá com as laranjas para o Lee espremer na máquina dele e a gente tomar um sucão. O dia passou e fomos embora, o Lee estava meio estranho, achei melhor não perguntar.

O Antunes pedia outra dose, sabia que a história ia levar mais tempo. O Léo só ouvia enquanto puxava um cubinho de queijo Gruyère do prato. Juca contava:

- No dia seguinte o Lee levou algumas outras frutas e percebi que a mocinha da limpeza dava um risinho pra mim e olhava para o Lee, meu mandarim não era perfeito e nem nunca foi. Mas eu o entendi dizendo para ela “séquiçu”, ela dava mais um risinho e voltava aos seus afazeres.

Já no final do expediente ela passou por mim e disse, “séquiçu”,, toda sedutora e tal. Como eu tinha acabado minhas coisas e estava indo embora, acabei topando com ela no elevador e ela olhando pra mim com olhos de fome. Quando o Lee apareceu e convidou a gente para ir até a casa dele tomar um suquinho diferenciado.

Entendi o recado, era ele deixando as coisas bem fáceis para que eu largasse a mandioca na nobre mocinha da limpeza, ela repetiu várias vezes a mesma coisa... “séquiçu”, “séquiçu”, “séquiçu”. Ele dava um risinho e ela devolvia, olhando para mim, foi quando desconfiei que ele poderia ter aprendido a palavra só pra facilitar as coisas entre mim e ela. Que cara foda! Que parceiro!

O Antunes não se aguentava:

- Caralho, eu sabia que tinha sacanagem na parada! Que safado! Conta logo!

O Léo corou, mas queria saber do resto da história...

- Daí então já no apê do Lee, bebidinha pra lá, a máquina espremendo suco e o cara batizando com cachaça, comemos uns petiscos meio esquisitos e do nada deu um calor, a mocinha tirou a roupa, pegou na minha mão e me levou pro quarto, deitou na cama e começou a me beijar.

O Léo pediu pra ir no banheiro e o Antunes resmungou:

- Porra Léo, larga a mão! Na hora boa não! Fica aí seu caraio! Aguenta firme!

O Léo ficou, sem saber onde enfiar a cara.

- Continua, vai...

Juca seguiu:

- A gente se beijando loucamente, quando do nada ela agarrou a minha cintura com as pernas e gritou, “séquiçu”!

Quase afundei ela na cama na pura madeirada! Quando senti uma coisa entrando em mim! Era o Lee, roubando toda a minha inocência se é que me entendem. Não deu muito tempo para reclamar, já tinha acontecido o que eu mais temia nisso tudo. O cara não entendeu nada quando eu parei tudo me vesti e vazei dali puto da vida enquanto aquele demônio sedutor deitado na cama apenas de lingerie agora questionava: “séquiçu”?

Descobri que a China não era pra mim.

No aeroporto, vindo embora, na fila do check-in tinha uma brasileira, conversávamos quando pedi pra ela tirar uma dúvida, se “séquiçu” na china era aquilo mesmo. Ela meio assim respondeu que “Sān rénzǔ” era a tradução para ménage.

O Léo com os olhos lacrimejando.

A Lurdes, garçonete lindíssima que passava por ali e prestou atenção a história indagou o Juca:

- O china comeu o teu botão?

O Antunes cuspiu a cerveja, batendo na mesa dizendo:

- Você tomou um sucão e o china comeu o teu botão!




terça-feira, 5 de julho de 2022

Um manifesto

pelas almas que passam a vida inteira entregues ao acaso de se perder em meio ao mundo.

Deleitem-se ao menos do prazer de carregar consigo mesmos seus medos, angústias e atrevimentos. Levem suas lições e assinem suas próprias sentenças.

O mundo é hostil, é inóspito, o oxigênio que nos dá a vida é o mesmo que aos poucos a tira. A natureza não é amiga, somos parte dela e de sua cadeia alimentar. As pessoas são sacanas, são safadas, é de natureza do ser humano levar vantagem em tudo e são pouquíssimos os casos dos que se eximem desta culpa.

A maior parte destes vive sob as sombras do próprio egoísmo e do mal que faz pensando apenas na própria sobrevivência. A todo momento extraindo tudo o que a vida pode fornecer e quanto mais fácil, melhor.

A noite é dos coiotes e só sobrevive quem de fato se encarrega de fazer parte da matilha ou se arma contra estes que procuram a carniça. Ainda que na matilha, sabemos que a moeda de troca nunca será a lealdade. No mundo de hoje, depender apenas de si mesmo é a grande valia.

"Para, observa, pensa, agradece, segue, percebe:
Para o que está fazendo!
Observa a tua ação!
Pensa se fosse na tua pele!
Agradece mais do que pede!
Segue a sua vida!
Percebe quem são seus inimigos!
e, não tenha medo..."

Os coiotes tendem a temer quem não os teme.

Faber Krystie McDonnadan



sexta-feira, 15 de abril de 2022

O trago

 Ao mesmo tempo

A brasa sustenta

Regida pelo vento

Naquele que se ausenta

 

O cais de américa se finda

A fragata se adentra

Um oceano se centra

Num destino que em sua vinda

 

Trás-os-Montes da Lusitânia

Agrava os perigos dos mouros

Em harmonia

Aos tolos

 

Pobres dos que carregam

Um destino incerto

D’onde se entregam

No exceto

  

Inocentes morrem

O cigarro se apaga

O frio se torna ad valorem

Nos pulmões de quem traga

 

Para tal derrota

É preciso astúcia

Ao som da rôta

Ao passo da renuncia

 

“As gaivotas pairam no céu tocando o oceano em seu desígnio de perpetuação. O Sol se põe ao longe enquanto as embarcações parecem sumir no horizonte. Estou num cais, como quem parte. Olhando o mar, como quem fica.”

Vom Krystie McDonnadan




terça-feira, 12 de abril de 2022

Mallevs Maleficarvm

Ali parado, observando o buraco negro a uma distância segura, observei que a anomalia ocorria no deserto de eventos. Alcançar o centro, para nós humanos, era de fato algo irreal, feria a nossa consciência, dignidade e moral. Seria um lançamento no desconhecido com a consciência de que o retorno jamais existiria. Arremessar-se contra aquele que era visto, porém desconhecido, foi apenas uma ideia impulsiva, que foi cumprida com sucesso.

O mundo é sufocante dentro do vórtice, do vácuo, os sons estridentes dentro de sua cabeça podem parecer cada vez mais altos e quando se percebe são seus neurônios que estão em plena combustão. Seus ouvidos não sangraram pois não havia pressão suficiente para que o sangue escorresse para fora. A cabeça parece querer sucumbir ao abismo enquanto os novos espectros são capturados pela gravidade, as ondas de rádio vieram de muito longe e percorreram o espaço através dos ecos que perduraram por bilhões e bilhões de anos entre idas e vindas do tecido escuro. A existência fora do planeta Terra já era de fato obsoleta, não se acreditaria mais em uma espécie de condição divina para que a vida perdurasse em ambientes tão hostis, o próprio planeta Terra era de fato hostil, porém contudo, ainda preservava as matérias primordiais para o avanço de seres dotados de inteligência a ponto de destruírem a si mesmos, em resumo, Deus estava morto.

A dilatação temporal é ainda um mistério para os seres humanos que nunca saíram do planeta azul, todos nós sabemos que até mesmo na estação espacial os cosmonautas tem 7 dias dias em 1, logo, imaginando que a teoria da relatividade de Einstein nos revela que os objetos massivos distorcem o tempo de acordo com sua gravidade, a dimensão conhecida como espaço tempo se desmembra em duas para nos explicar a que horas e onde estaremos, mas, se tratando de horas, já entendemos que os nossos sentidos estão aplicados a uma invenção tão inescrupulosa e impotente quanto esta capsula que foi feita para a minha proteção. Aqui dentro deste que não denomino espaço, universo ou algo do tipo, objetificarei apenas como, novamente, o deserto de possibilidades. É inerte, é vazio, é estranho, obviamente inóspito e inalcançável aos olhos humanos.

Hoje o tempo parou, ontem talvez o tempo estivesse parado, talvez eu esteja aqui a muito tempo, talvez eu esteja aqui por um piscar de olhos, o mundo cá deste lado de dentro do vórtice, tudo parece não ter lado, é um sufocante e confortável vazio, sentido de todos lados e formas, o próprio corpo convertido em luz se desfaz e se refaz, os olhos propriamente ditos, fisicamente, se rebelam e em uma distração observam o todo e o nada ao mesmo tempo. No meio do caminho existe também a consciência que não se desprende do corpo, porém o corpo se converte em luz e a luz de uma forma contínua se refaz dos mais variados formatos dentro deste deserto de possibilidades, ela continua sofrendo os ataques da gravidade extrema e dos pensamentos hora arrependidos, hora alegres pelas novas experiências e descobertas que se convergem em um ambiente ainda mais hostil, a solidão.

Faber Krystie McDonnadan




quinta-feira, 31 de março de 2022

Toronto

 Eu queria dizer uma coisa breve, nunca foi meu plano te deixar.

Você com seus transeuntes que nunca param de andar, é natural, é fria, é calma e é tranquila. Toronto é de longe o melhor lugar que já estive, é onde me sentia bem no meu trabalho, me sentia bem em relação às pessoas tanto no tratamento para com os estranhos que pediam informação quanto na rispidez de outros que chegaram de outros países ainda crus e cegos pelo seu instinto de sobrevivência. Suas ruas são convidativas e nos fazem querer conhecer cada pedacinho, tanta coisa para se ver, tanto a se descobrir dentro de sua excentricidade do nascer de um dia ao nascer de outro dia.

Andar pelo cruzamento da Yonge and Bloor, ouvir ao longe Del Barber em sua musica lançada em 2014, Big Smoke. “Cegos pelas luzes da cidade Cego pelas luzes da cidade ninguém pode ver você parando. Faz tanto tempo desde que você viu as estrelas da pradaria e você não tem certeza de que pode lembrá-los, mas há algo aqui para você encontrar”. É uma música que fala sobre nossas raízes, sobre certas coisas que a gente se encanta quando descobrimos algo novo e como as coisas parecem sumir no éter. Seguindo por qualquer direção encontramos sempre uma arquitetura preservada, sempre muito antiga, sempre muito bem cuidada. Atravessar com pressa pela Union Station e adentrar como ratos às vielas da própria estação em construção dá um ar de conhecimento, tanto quando andar pelos subterrâneos e travessas externas entre os edifícios quando não pelas passarelas extremamente artísticas feitas exatamente para nos proteger do frio, a vida não para, eu nunca parei, parecia uma droga fortíssima injetada em minhas veias, desde a rotina mais natural como comprar tickets de metrô, como o mais fora do comum em voltar em um ônibus lotado de casa ao lado de 40 pessoas fantasiadas (entre eles um pirata e um casal de coelhos) e você com uniforme do trabalho quando o ônibus parava para manutenção as 2 da manhã e todos desciam em frente a McDonalds.

O café é praxe, ninguém vive ou fica sem e sempre tem um lugarzinho para conseguir um copo cheio. As Starbucks, Tim Hortons, McCafè e todas as outras conveniências 24h que também tinham uma máquina. Os restaurantes Jamaicanos para quando sentir saudade do arroz com feijão. Os shoppings, os maiores que já vi na vida, cheios de muita magia no Natal. Pessoas que em 10 minutos de conversa se tornavam amigas sem nenhum outro interesse por trás.

Lembro até hoje de como conheci a Sati, uma indiana que estava perdida e pediu informações, eu estava na cidade a 3 semanas, mas tinha meu celular que ainda funcionava. Ela Queria chegar na Adelaide Street, era caminho após o ônibus ter parado e deixado todo mundo ali em frente ao McDonalds. Eu resolvi ir a pé até a Liberty Village e acabei a encontrando, parada ao lado de um prédio. Dalí seguimos juntos, ambos com um inglês bem raso, mas que conseguíamos nos comunicar. Falamos algumas coisas sobre nossas vidas fora dali e nos despedimos quando a deixei em casa. Não trocamos contatos e nunca mais a vi. O fato nem era exatamente esse, mas como a cidade nos leva a destinos tão diferentes em tão pouco tempo.

E o Andrew, sempre me atendia no Brass Taps da Danforth, que cara sensacional, sempre tentava ensinar como pronunciar o nome da cidade da forma correta. "Is not Toron-to, is Turo-nou.", o Evren, que cara mais que sensacional, chegou como refugiado e tinha tanta coisa para dizer, para fazer, para mostrar. Ator, assim como eu, hoje ele tem um canal no Youtube e disse que um dia me contrata. 

Atravessar a cidade enquanto o Sol ainda não nasceu e acompanhar o acontecimento sentado no banco do streetcar é uma experiência tão fantástica quanto propriamente andar de streetcar. Observar as pessoas em pleno movimento junto da cidade que respira ar quente dos túneis de metrô, algumas pessoas dormem ali e sempre nos deparamos com elas quando saímos antes do Sol nascer. As estações Osgood, Christie, Chester, a Broadview... Woodbine... Bay, Bloor, Union... Sem deixar a Spadina, Eglinton West e pensar no passeio que é cada vez que se desloca, tudo vira arte, tudo se torna uma imagem a ser apreciada quando falamos de Toronto.

Não poderia deixar de falar sobre a Queens Quay no Harbourfront em seus cais ao longo de toda a orla. Ali encontramos os patos mais lindos de todo o planeta. Toronto tem vistas ótimas e como todo lugar, seus centros turísticos, CN Tower, o Aquário, as destilarias e tantos outros lugares lindos e famosos, mas essa não é a minha Toronto, A Toronto que conheci é muito mais do que os lugares turísticos, foi uma cidade que me senti aconchegado, como num abraço. Nunca desde então me senti em casa em nenhum outro lugar. Um dia voltarei, e desta vez para ficar, nosso adeus, foi apenas um até breve.


Cya my friend.


"The tower, the clock, the streetcar and the fog. All together in the same time, same way, same street... like the revolution, inside my hearth while a whisper pass by me, telling about the world and your point of view. I was scared a little and at least I thought by myself. Here is three things never stop: The clock, the fog and me."





quarta-feira, 23 de março de 2022

A Fobia e o Decreto

Era mais um dia de sol, com aquele vento frio que soprava entre as frestas da janela e adentrava os pulmões já dissecados pela química de um cigarro. O trago absorvia o peso dos dias enquanto arrancava a tosse lá do fundo, até mesmo o agasalho exigia um pouco mais de conforto àquele que mal vestia, mal cabia, era tanto a se cobrir que o tecido já não se suportava, as tramas hora fechavam-se e hora abriam, o tecido respirava e transpirava o álcool que restava naquele corpo que buscava calor e os fantasmas apareciam buscando ajuda onde todas as entrelinhas já estavam tão expostas quanto a febre.

Arritmia e condensação precipitavam diante do crepúsculo que se fazia presente por entre as arvores e torres de energia. As linhas tinham um ponto de inicio e final, o horizonte calmo e sereno denunciava a tormenta que se avizinhava no meio fio da calçada. As paredes de tijolos corroídos pelo tempo tinham data indefinida para se render a erosão e todo o processo de deterioração mundano. Ali se faria um túmulo onde os insetos mais desavisados seriam definitivamente aniquilados pela gravidade. Uma explosão na casa das máquinas tratava de um erro humano. O trago ainda presente assistia ao caos da própria janela, os pássaros assustados se movimentavam para um lugar seguro longe dali enquanto a dor dos entes queridos se resumia em gritos e pranto.

O piano ainda restava diante da sala do segundo andar já sem acesso após a destruição das escadas. Nas proximidades ouvia-se as tampas de esgoto batendo em seu anel metálico enquanto a água turva e barrenta descia a avenida carregando os corpos, carros, animais mortos e lama. A enxurrada vista do alto do helicóptero que fazia um voo panorâmico, antes de se chocar com os fios de alta tensão e consequentemente cair na quadra poliesportiva do complexo escolar, era o semblante do desespero dos que ali buscavam ajuda. O fogo tomou conta d’onde a água preferiu se eximir da culpa.

Após um tempo tudo silenciou, a lama acalmou, o fogo foi se apagando dando origem ao carbono e aos ossos dos que não puderam voar, o comum destino daqueles que no inferno se instalaram e ao léu se findaram clamando pela justiça divina. O estrago, o trago, o bêbado e a lamparina, davam o tom de mais um entardecer lindíssimo no paraíso enquanto as lanternas se acendiam sob o precipício.

Aqui jaz um cadáver, sem nome, sem família, sem lar e sem nada, não se sabe se teve seu último desejo atendido ou se pode fazer sua última refeição. O que se sabe é que a vida toda ele havia sonhado com este momento, o momento em que se explica o abrupto som de um trovão.






sábado, 20 de novembro de 2021

Carta a Vom - As memórias

Meu caro Vom, sempre inicio nossas cartas com este prefixo, já que tantas as vezes nos obrigamos a esquecer. O esquecimento parece uma ligeira defesa do nosso cérebro para que não guardemos tantas coisas as quais as vezes não possamos carregar. Como diria um grande amigo em um de seus desconexos textos: - “Te vejo neste contexto desde sua partida, como alguém que viaja e não volta, não tive nenhuma opção a não ser aguentar os mundos nas costas, daquele dia em diante tudo o que eu pude fazer foi suportar e entendo que suportarei até o momento em que passarei este fardo a outra pessoa que terá a minha imagem e semelhança, apesar de tuas loucuras, havia uma bondade infinita dentro deste seu coração, apesar da dureza, havia a compreensão, apenas sua teimosia me matava aos poucos assim como te matou também.” Sinto, meu caro Vom, que daí deste lugar pequenino as coisas são vistas com um certo desleixo, a situação por aqui é precária, ouvi dizer que mais ao oeste pessoas passam fome, não possuem água nem mesmo para cozinhar seus alimentos tão escassos que perecem ao desuso. Gostaria também de dizer que talvez seja um engano taxar as coisas como norte, sul, leste e oeste... Pensando bem, vivemos em um globo, um geoide, uma esfera, enfim, independente da direção que você percorra, a chance de retornar ao ponto de partida é muito grande. Levando em consideração os efeitos que isso poderia causar na malha espaço-tempo e alguns infortúnios pelo caminho a chance de que tudo retorne ao seu lugar é muito e fatalmente grande. Não há norte, nem leste, nem sul e nem oeste; O que sempre haverá é a frente. Quando observamos algo, temos a percepção de que existe profundidade, mas sempre observamos tudo em 2 dimensões, nossos olhos humanos não são capazes de perceber 3 dimensões. Pode parecer besteira o que digo, meu caro Vom, mas se observar daí da sua janela o nosso planeta, verá uma esfera? Verá um círculo, como uma chancela, como a mesma chancela que estampa o envelope desta carta que chega até você pelo menos 10 anos atrasada. Sabe que estes são problemas mundanos nos dias de hoje, a realidade se choca com a ciência e as pessoas simples, mortais, insistem em querer explicações óbvias demais e optam por acreditar nos absurdos. Volga hoje acordou resfriado, miou pra lá, olhou para a tigela cheia, cheirou o leite e pulou na mesa do café, serviu-se de uma xicara, optou por não colocar açúcar, pediu meu cachimbo emprestado e está lá, admirando a neve na janela enquanto degusta seu cafezinho e aquele tabaco que colhemos no último verão. Verão aquele que tenho uma certa saudade, montávamos quebra-cabeças, riamos da TV, bebíamos um bom vinho. Hoje seria um dia de memórias, mas algumas coisas eu fiz questão de esquecer, o dia em que você foi embora na capsula Soyuz e simplesmente ficou sem mandar notícias por anos e anos. As meninas que também foram embora e as vezes ligam para saber como estamos. Queria dizer que sinto saudade de casa, mas ao mesmo tempo um grande amigo das terras altas dizia “Bidh an dachaigh agad far a bheil do chridhe” – “Sua casa será onde o seu coração estiver” – Logo, vejo que não tenho uma casa, já que todos se foram, restou o Volga, ele que as vezes passa pela sala com seus miados contundentes de que guardou muita mágoa de todos vocês, esses dias ele disse em alto e bom som que vai embora daqui, que as malas já estavam prontas, ele só precisava de um plano para levar a nossa vaca com ele para garantir o estoque de leite para o inverno. No mais, ano que vem dizem que o tempo melhora, só não sei para quem e por que insistem em prever o futuro, o tempo, o clima. Os seres humanos são seres fascinantes até certa idade, são irritantes quando descobrem que aos gritos se consegue qualquer coisa, são ainda mais irritantes quando entendem que chorar demonstra fraqueza dentro de si e desperta cuidados nos que estão ao redor. Então, meu caro Vom, entendemos que este fascínio também é perecível e que nós acabamos nos esquecendo muito facilmente do que nos encantou para manter uma chama acesa. Quando fecho os olhos meu irmão, vejo o caminho sem volta que nos enfiamos e que precisamos resolver, penso na veracidade de minhas memórias, cada vez mais obtusas, lembro-me de como éramos felizes brincando na neve, aquele balanço feito pelo caseiro para que nós pudéssemos balançar até tocar o céu. O velho carvalho, os moinhos, o vento que soprava pelas frestas do celeiro, os animais que se abrigavam do frio e se escondiam dos lobos que vez ou outra tentavam a sobrevivência. A vida nunca foi fácil, mas nunca foi tão divertida, não é mesmo meu irmão? As vezes me pego olhando nossos retratos na parede da cozinha enquanto paro para pensar na vida, sento-me no balcão e passo alguns minutos observando a brasa do fogão e lembro do dia que balançamos tanto que você chegou a tocar o céu, as brasas do fogão se tornaram as labaredas do foguete. É, meu caro Vom, as coisas nem sempre são como deveriam ser, ou as vezes são, depende do ponto de vista no qual nos encaixamos. Eu gostaria de falar muitas outras coisas, mas caíram no esquecimento. Fique bem meu amigo, meu irmão, meu companheiro. Volga foi brincar lá fora.

“Até mesmo os lobos que cruzam o branco deserto enevoado podem por a vida em risco se não fosse o instinto. Observar não compreende em apenas observar de forma propriamente dita, mas se faz necessário entender que nem tudo pode ser escolhido, um impulso de olhar para um lado e não para o outro, esta deliberação automática e instintiva nos faz compreender e observar sempre a metade de um dia.”

Faber Krystie McDonnadan




sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A Pólis e Apolo - Um manifesto

Somos fortes, somos individuais e prezamos apenas pela nossa sobrevivência, sobrevivência essa de um conceito falso, já que a maior parte de nós ainda vive com os pais e não tem a necessidade de pagar aluguel e contas básicas como alimentação, transporte e vestimentas. Alguns de nós tem seus empregos, são até bem-sucedidos, mas jamais escapam da sombra dos pais, estes que com o auge dos 40, 50 ou 60 anos ainda provém o sustento de uma família. O dinheiro falta, não temos controle financeiro, não precisamos dele, somos nós que mandamos no nosso dinheiro e compramos o que queremos, gastamos tudo com o que nos convém. Sejam bebidas alcoólicas, roupas de grife, sapatos, tabaco, drogas ilícitas e afins. Muitos de nós possuem pequenos fetiches por coisas ditas de nerd, ou então o termo nerd foi adquirido por alguns de nós que se autodenominam nerds, que fazem parte da cultura nerd, da cultura gamer, da cultura de algo tecnológico. Amamos livros que talvez nunca leiamos, ou somos escritores de um mundo que não consome a nossa escrita, somos seres viventes de mundos duais, nossos álter-egos sobrevivem virtualmente em lugares onde postamos fotos com filtros, apreciamos um mundo não palpável que serve de alicerce à depressão de uma geração toda. A confusão mental que se avizinha a passos largos se transforma logo em músicas de letras vazias, riffs rápidos, flows contínuos e strings de curto alcance. Somos aqueles que nunca foram a uma guerra, que nunca ouviram um tiro de canhão disparado por um tanque ou ainda mais, nunca vimos o próprio tanque explodindo após uma descarga de bombas vindas do céu através de um avião e não estamos nem um pouco preocupados com isso. Queremos a paz. Queremos que o mundo seja tão belo quando as fotos que vemos no Pinterest. A guerra é interna, lutamos contra nós mesmos, dentro de nossas cabeças. Sentimentalmente somos carentes de afeto ou simplesmente ignoramos este fato nos escondendo nas sombras de um sorriso semicerrado pela bebedeira ou efeito de algo. Passamos a semana esperando pela sexta-feira, ansiamos pelo sábado e morremos novamente no domingo. Somos a escória, somos os ladrões, somos os reclusos, somos os culpados pela sociedade marginal, pois, por incrível que pareça, nós mesmos éramos os marginais e hoje somos os que consomem o mundo, somos a mão de obra e amanhã, se ele chegar, seremos os detentores do dinheiro, teremos nossas contas, mas não teremos nossas casas. No nosso mundo não há divisas, não há fronteiras, seja ele virtual ou real, temos uma capacidade de mutação e adaptação tão grande, que isso nos liberta das algemas do pertencimento mútuo da terra. Somos o próprio vento, que sopra pelo vão e traz o frescor da manhã de mais um dia. Este que sempre será a dúvida, o amanhã virá? Isso significa que cada dia é único e que todos os dias podem ser os últimos mas, isso não significa que não devemos acreditar em um mundo melhor. Somos os seres decadentes do século presente, vivemos em busca de algo que não sabemos o que é, de onde vem e para onde vai. Temos ciência apenas do quanto custa e alguns nem isso, estes nasceram em berço de ouro e não precisarão se preocupar com nada a vida toda. Haverá talvez a necessidade de adquirir uma boa educação para que se perpetue a sua própria espécie, estes são os ditos comuns que em geral repetem sempre o mesmo ciclo - nascimento, aprendizado, trabalho, procriação e morte. - Dentro destas fases existem os sentimentos afetuosos que o mantem nesta linha rumo ao infinito ciclo de perpetuação da espécie dentre o sistema no qual somos apresentados. É mister de como o planeta sustentará toda uma geração de pessoas que no final das contas não conseguirão sustentar o próprio sistema. Este entrará em colapso e cairá em desuso como uma bituca de cigarro ou como uma resistência de um dispositivo de vapor. A tecnologia vencerá, o ser humano perecerá em doses homeopáticas restando accounts, characters, e-mails, IDs e skins. Somos os virtuais, os eternos, os binários, não-binários, os sem gênero e os generais. A nossa guerra, mais uma vez, é contra nós mesmos. O futuro não é o agora e ele talvez nem exista neste lapso temporal causado pela própria inercia constante em nossos corações.




quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Drogas, conteúdo sexual e linguagem imprópria

A casa estava cercada, era noite, quase dia, na linha do horizonte o Sol se erguia entre as plantas mais altas. Fizera frio na madrugada, o que também era um fator de dificuldade para os que estavam ali aguardando a abertura das portas já que um nevoeiro tomava conta dos arredores. O sentimento de solidão unido ao cansaço do trabalho apenas reiterava aquele nevoeiro que insistia em tomar conta da área externa, do telhado e passar também pelas frestas da janela e das portas. Tudo estava gelado e o fogo da lareira sem alimento sobrevivia em uma brasa, pequena, cintilante com um brilho calmo, digno de algo que esteve ali a noite inteira e necessitava-se findar. As poltronas velhas rebatiam o ar frio que entrava pelas frestas e até os animais que por hora se aqueciam em suas posições, estavam procurando uma saída, mas não havia movimento naquele lugar. A névoa permanecia intacta como se fosse uma entidade maior, como se fosse algo consciente.

Não havia ninguém em casa, não havia calor, nem fogo e muito menos luz. No limiar de uma existência, um cachimbo deixado ali há décadas, o fumo dentro dele já sofrera com a erosão e deterioração orgânica. As escadas, o teto, o abismo. Dentro de cada fibra da madeira que compunha aquela cabana existia uma história diferente e desde a muito tempo nada mais acontecia. Quando por um momento a porta abriu, uma fresta, todos ali ouviram o ranger das dobradiças enferrujadas e pelo movimento do trinco que estava emperrado a tanto tempo.

O caçador por sua vez acordava observava a névoa que cercava seu sítio, observava que todos tinham ido embora e ainda assim as memórias estavam guardadas em cada fibra da madeira de sua cabana. Não havia luz suficiente, não havia calor suficiente, não havia trinco, nem porta, a névoa que entrava pelas frestas estava ali por um motivo. A arma que atirava pela última vez encerrava um ciclo e delimitava ali sua dor, seu arrependimento. Seres sem rosto e nem roupas caminhavam em direção a entrada buscando abrigo, os animais que compunham a cena por hora estavam empalhados, surgiam em busca de suas cabeças. Os homens e mulheres aguardavam ali como quem aguarda em uma estação. Estavam sem bagagem, apenas aguardavam errantes pelo momento de cruzar os trilhos.

Naquele momento o céu abriu e a névoa se foi.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O Juízo

Os gritos de socorro que se ouvia ao longe entre os cânions repletos de areia e solidão a lua pairava no ar como se flutuasse entre o túmulo e a grama verde que cobria o cemitério no qual se instalavam os bunkers nos quais muitos se salvavam.

Salvação era a ideia primordial antes que qualquer coisa se chocasse com a realidade mórbida dos alienígenas que visitavam constantemente o planeta. Estes tinham uma certa resiliência a aterrissar suas naves e se deparar com a hostilidade que poderia ocorrer em um lugar onde misseis apontavam para os iguais. Era de fato complexo compreender o porque daquela destruição. Por vezes clamavam por soberania e outras vezes clamavam por misericórdia, a questão era o entendimento entre ambos que já não falavam a mesma língua ou até mesmo não se interessavam em compreender o que sentia cada um.

O tumulo estava vazio, era apenas uma ideia que a cada pá de terra que se colocava ali se tornava também o fim de qualquer chance de paz. O tumulo significava o fim, ou talvez o reinicio de algo que se via incrivelmente obsoleto. Na verdade, enterrar pessoas também fazia com que o próprio solo se tornasse algo tóxico que contaminava os recursos naturais nos quais se nutriam os seres humanos. Algo que não se entendia era exatamente o porque os seres não tinham a ideia de que modificavam os meios que se instalavam com suas palavras e ideais. O desentendimento tornava tudo mais obscuro quando as ações não condiziam com as metas de vida, tudo era para o presente e tudo se fazia obsoleto com o passar do tempo. O egoísmo humano se tornava a produção mais tóxica que os próprios corpos enterrados.

Claro que alguns diziam também que a matéria orgânica nutria o solo e fazia com que ele se tornasse melhor, não estavam tão errados, mas, até que ponto realizariam plantios em solos ditos sagrados ou mesmo que tudo aquilo fosse pelos ares não seria uma boa sacada manter tudo como estava. O silencio fúnebre era cortado pela liberdade na qual o mesmo espirito que cobrava caro pela estadia também falava sobre como se ofertar o próprio desdém.

Eram espíritos errantes, quase que em um jogo de batalha naval onde qualquer passo se tornaria o motivo para a explosão. Durma bem, meu anjo, ninguém ali afinal gostaria de dormir sozinho, muito pelo contrário, seria até mais seguro que as idas e vindas das rotações do pequeno planeta azul fossem mais lentas e nas quais a vida seria menos incompleta se não fosse a resiliência extraterrestre. A humanidade estava em colapso e não seria inteligente provar-se existente no mundo que seguia a deriva e numa de suas entradas o meio humano era protegido por uma densa camada chamada atmosfera, mas, afinal, estávamos protegidos ou presos?

Nos é mais interessante pensar que estamos sozinhos ou mais tenebroso arriscar um palpite que estamos acompanhados nesta jornada clássica de uma nave que atravessa os tempos em busca de um lugar seguro para a espécie? A vida será perpetuada, desde que o ser humano não se deteriore e não se coloque a prova de vida pois, a cada segundo vivido, notamos que a vida se vai e que muitas vezes o piscar de olhos astronômico sejam vidas inteiras dos seres que sobrevivem no planeta azul.

A questão maior que ainda paira no ar como um beija-flor, por que estamos aqui e qual o propósito? Se a vida é tão curta e se vivemos no meio-fio todos os dias em busca de sobrevivência, por que fazemos tudo tão mais difícil? Mais uma vez sugere-se o egoísmo dos universos que convivem, cada um luta pela própria sobrevivência da forma que pode e no fim de tudo nunca deixamos de poluir.

Os anos se passam e nós apenas nos reinventamos. Maquinas, plantas, pulso, agonia, sentimentos, psique, jogos e feridas. Cada um nesta vida, dá o que pode e o que tem, mas nem todos se esforçam para manter a sanidade mental alheia, o metal, o conforto, a densidade da camada atmosférica, estes são inigualáveis pontos a se pensar todos os dias se realmente são necessários.




quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Hljómalind (trilha sonora)

 A iluminação sob as velas e os fogos que ela mesma acendeu enquanto acendia também um cigarro antes de sua apresentação, seus olhos vidrados, roupas surradas, dedos esguios e um piano velho. No palco também empoeirado um vento batia por conta da porta do camarim que ficou aberta, na verdade ela não se fechava a anos devido a ferrugem que tomava suas dobradiças e ferrolhos, a necessidade de renovação era imprescindível naquele momento, porém, não se tinha notícias do mundo externo.

A humanidade daquele dia em diante não sabia mais como se encontrar e não falamos de abraços e extensos diálogos, falamos de saber a atual situação e esta era um pouco mais complexa pensando do ponto de vista técnico em 59 milhões de anos-luz onde uma estrela ainda brilhava, longe, inalcançável, bela e branca. Era a visão da pianista que olhando por uma fresta do telhado que se rompeu na ultima tempestade, a esperança estava ali, naquela fresta rompida pela água que se transformou em mofo no chão de carpete que um dia já foi um apoio aos pés de pessoas muito felizes e importantes. A esperança estava ali, a 59 milhões de anos-luz, longe, inalcançável, mas, estava ali, bem na fresta, em seu olhar turvo.

Encerrando seu ato, apagando o cigarro e com a boca seca, ainda sentada na banqueta que a aproximava mais das teclas, entre tantos pensamentos possíveis, ela só poderia arriscar o palpite de que o Sol retornaria no dia seguinte, trazendo uma nova esperança, bem mais próxima, mas mesmo assim, pouco palpável. Ele traria um novo dia e ao mesmo tempo ofuscaria também as outras tantas esperanças. Lembro-me do piano decadente, da pianista que derramava lágrimas sobre as teclas enquanto executava um réquiem para uma plateia morta. Dali saíram as notas de um lamento no qual não havia ninguém para ouvir a não ser suas próprias entranhas.

Nota por nota, movimento por movimento, páginas e páginas. Tudo se tornava cada vez mais dramático quando em um movimento brusco a batuta caíra em plena execução tornando o prazer sensorial em medo e angustia ao perceber que não havia um maestro e muito menos a orquestra. Ela estava só. Não havia palco, piano e nem pianista.




sábado, 28 de novembro de 2020

O sonho se foi - por Vom

Meu caro Fiodor, hoje me encontrei no limbo, hoje ao despertar percebi as horas e percebi que o tempo correu rápido demais. Quando notei já tinha passado meu aniversário e assim que levantei percebi que já se foram 3 séculos e 6 décadas. Isso me faz parar para pensar na relatividade. Encontrei um pouco de paz na realidade aumentada das versões Deus x Maquina de uma vida completamente invadida por soldados em missão de paz. Sabemos o quanto é necessário saber que a paz existe, desde que também saibamos como controlar a soberania e pegar em armas se for necessário. Sei que daqui da terra não temos muitas formas e garantias, mas ao mesmo tempo sabemos dos limites dos quais a vida se classifica, se eterniza e se mantém em pleno ciclo. Quanto mais se evolui mais próximo do precipício nos vemos e cada vez que o mundo se aproxima do final. Os seres humanos acreditam em coisas que as vezes parecem tão sórdidas e mentirosas, parecem na verdade bem perdidos, tristes, sem perspectiva. Eles tem razão, eles sabem que o fim se aproxima e que é extremamente difícil pensar que todos um dia se vão, menos nós meu caro Fiodor. Nós estaremos sempre em algum lugar, errantes, e, por mais que nesta estação espacial não tenha hoje nem mais oxigênio e as capsulas de hibernação já estejam por um fio, a cada 20 ou 30 anos terrestres elas despertam para que o corpo não entre em colapso, me sinto como se não houvesse mais estação, nem caverna, nem mares, nuvens ou qualquer coisa palpável com uma saída.

É admirável e intenso como hoje vi uma nebulosa. Ela se parecia com uma borboleta. Me diga meu irmão, estes animais ainda existem? Tenho medo as vezes de perguntar as coisas, as respostas podem ser devastadoras ou de fato nem chegarem a tempo. Talvez seja este mesmo o problema, o tempo. Este é marcado, mas é falho, é implacável e quase sempre é triste. Quando vejo algo muito brilhante no céu já penso em esperança, já imagino que vão me tirar daqui, mas quase sempre são apenas destroços de naves espaciais ou cometas ao longe que se espatifam na atmosfera terrestre. Ontem, de longe, Vênus deu o ar da graça e me fez pensar que a esperança apesar de longe, pode ser ainda algo a se agarrar. Hoje tomei consciência de que mesmo a deriva, estamos sempre em movimento e este sempre será o mote para a realidade e o movimento, este é instantâneo.

Voltando ao limbo, este era apenas uma realidade que se foi ao abrir os olhos. Ele foi real e ao mesmo tempo foi imaginário, de um lado o preto do universo cravado de estrelas e do outro a câmara de hibernação de tampo aberto e a sirene que insiste em tocar acusando a troca mais que urgente dos cilindros de oxigênio e água. Os remédios acabaram também, os alimentos já estão em racionamento. As sirenes tocam e a relatividade me choca com o céu e o inferno diário, e neste momento nem mesmo o céu significa paz. Este hoje me garantiu que Deus está morto.

“Libertar-se da mentira nunca quer dizer que a verdade foi posta as claras. Significa que talvez o inferno chegou mais cedo que o esperado. Os significados de chiaroscuro são tão amplos quanto uma pintura de Rembrandt em meio ao mundo no qual vivemos e isto sim é tão amplo. A cada palavra que descreve o todo, ele se amplia, por isso a libertação é algo extremamente duro. Em verdade, a própria verdade pode ser também o encontro com seu próprio tumulo.”

Faber Krystie McDonnadan




sábado, 26 de setembro de 2020

Os anjos

Hoje fez 1 ano.

Aquele copo quebrado que flutua nas marolas de um fluente rio de lodo trouxe uma complicada composição de um fado de esperança e dor. Observar os fractais que estilhaçam a luz em multicores também nos eleva a condição pensante, precisamente, em um cemitério de águas vivas que já não mais fluem ou nadam pela veia d’água. O sono se desfaz, o sonho deu lugar ao desequilíbrio de um pesadelo em que por algumas vezes se fazia no breu. Ao arriscar contato telepático em outros lugares, deu-se espaço ao mais temido dos deuses, Cronos, deus do tempo, aquele que tudo devora. Olhar para trás não é saudável e olhar pra frente não é aconselhável. A tentação de experimentar o presente se torna a única saída e a única forma de se conseguir um melhor olhar sobre as coisas.

O vento que determina a velocidade e a direção das bandeirolas, é o mesmo que hoje não sopra mais em seus pulmões. A vida tirou você daqui e o vento levou você pra onde eu não posso ver. Enquanto isso, os corais se mantêm intactos, inertes, mortos e o veleiro continua a deriva, como sempre esteve.

Me sinto num cais, como quem parte. Olhando o mar, como quem fica.

"Somos todos escravos e reféns de nossos atos. O mundo continuará girando e a garrafa de whisky estará sempre no fim, você pode deitar-se e perder horas de vida, você pode embriagar-se e justificar suas escolhas e você pode simplesmente ser alguém melhor todos os dias. O tempo, este sim é o pior dos monstros, ele dá, ele tira, não haverá trégua ou misericórdia."

Faber Krystie McDonnadan




sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O avesso

As vezes é como se o peso do mundo estivesse em minhas costas, como se tudo o que carrego em mim fizesse sentido apenas em um momento final. As vezes me pego de surpresa pensando em por fim em tudo isso e as coisas se resolvem de forma clara. Eu e o velho espelho d'água nos encontramos, o gosto amargo dura mais do que deveria e tudo aquilo ainda sem sentido persevera em um momento audaz, vicioso, incompleto e terminal. É como se o peso do mundo estivesse em apenas um grão, em uma sentelha que persiste em alimentar o fogo.

É uma esperança morta. Uma esperança triste, a tristeza da espera, o caos de um lugar que nunca pertenci. O criador versus a criatura. A máquina que não para, trabalha e sem vida continua a trabalhar. É o hostil, o horário, a sirene de um alarme que toca a noite inteira e te faz acordar no meio da noite.

Um momento de paz que só existe por alguns segundos antes da explosão nuclear. É o sem-tempo, sem-teto, sem-música, semi-riso frouxo incômodo durante a prece e presença imortal. É o trauma da cabeça contra o chão, do ônibus que nunca chega, do metrô vazio, das luzes que ao longe vem chegando e se vão. O barulho industrial, a canção que já não existe, a poesia que morre junto aos vitrais de uma catedral após o atentado.

Sempre existiu uma carne insensível, putrefada entre os vermes e abutres na estrada. Os carros passam e se vão, o Sol já deu lugar a noite e o dia se foi para nunca mais voltar. O coringa se desfaz aos poucos, se torna um alfinete no meio do palheiro e dá lugar a dor e ao descaso.

Daqui da ISS, vejo o mundo escapando por entre os dedos de um pianista em uma cancioneta errônea, inominada e decadente. No sonho a escuridão das estrelas da lugar ao sentimento de queda e ao incômodo de bater com o corpo no colchão de terra batida, lama e poeira.

De volta ao espelho d'água, este agora turvo, como um castelo de cartas que, em câmera lenta, se dissipa junto ao realejo e suas notas dissonantes por extinto, extintas.



sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Credêncio

Sob a ótica intrínseca de um sonho atravessando o meio-fio como um pêndulo que rompe a barreira do ar e nos leva a crer que a gravidade não existe. O mundo deixa de ser um local hostil quando adormecemos, ele é reconfortante, ele nos traz um espectro similar, o meio-fio entre a realidade e o irreal no limiar da consciência.
Faber Krystie McDonnadan


Ao deitar-se limitou-se ao silêncio, cabeça encostada no travesseiro, de lado, como se estivesse apenas imaginando o dia seguinte, todos fazem isso, o mundo nos fez assim, programamos o dia seguinte sempre. Pensamos nesta forma robótica como se tivéssemos a plena certeza de que ao encostar a cabeça no travesseiro o dia seguinte apareceria logo ao abrir os olhos. O dia seguinte, uma nova chance, um novo acalanto, uma nova promessa, um novo abismo, uma nova tortura, uma nova possibilidade, ou se pudermos também chamar tudo isso de os mesmos substituindo as palavras, as mesmas chances, os mesmos acalantos, as mesmas promessas, o mesmo abismo, a mesma tortura, a mesma possibilidade. Enfim, qual a distinção trazemos ao nosso interior quando nos deparamos com o dia seguinte, com a semana seguinte, com o mês e o ano seguintes. O marasmo é algo intrínseco, assim como as vozes que parecem ao longe conversar sobre algo que nunca entendemos bem, a não ser que elas falem bem aos nossos ouvidos, nos causando desconforto enquanto estamos paralisados em nosso sono (não mais) profundo.

Um rádio ligado noticiando as manchetes em plena madrugada, uma conversa, a TV que permanece ligada, os fantasmas que pairam acima de nossas cabeças, o terminal rodoviário que o corredor se transforma se a porta permanecer aberta e assim partimos da premissa de que o que os olhos não veem o coração não sente, e, quando sentiu? Quando os esqueletos e fantasmas foram realmente um problema? Quando a loucura esteve presente e quais as causas dessa esquizofrenia particular, branda e pontual? Quando isso tudo causou pavor? Quando tudo isso não fez sentido? Apenas o tato se valida entre os vitrais frágeis da segurança pessoal?

Não falo de experiências extrassensoriais, quando ouvimos ou vemos, os sentidos são muito bem usados e o fato de que ninguém mais ouviu ou viu não quer dizer que estás louco, mas, apenas você foi capaz de ouvir e ver e esta é uma dádiva.

Talvez seja necessário encontrar o próprio eixo dentro de tantos eixos possíveis levando em consideração que o ser humano hoje pensa apenas em 4 eixos sendo o último ainda um mistério. 

Ao compreender os sonhos, muitas vezes como forma de alertas ou bons presságios, compreendemos também que a nossa mente é mais poderosa do que pensamos. Assim como também nos prega peças ao nos alertar muitas vezes de coisas sem sentido. O fato é que somos um corpo, guiado por um cérebro, que precisa do corpo para sobreviver e afinal, o que somos?

Somos mente, somos inteligência, somos algo inexplicavelmente fantástico. Somos o que podemos chamar de mistério. Não somos o ar, nem mesmo o pêndulo, somos o próprio meio-fio. 

Os sonhos nos levam a realidades diferentes e quando compreendemos que aquilo foi apenas um filme que passou pela nossa cabeça nos tira a credibilidade de tudo aquilo ter de fato ocorrido, retornando de que apenas o tato se torna uma prova segura sobre a realidade. Afinal, o que você respira agora, é mesmo ar?

A proposta é assimilar, pensar sobre o poder que temos em divagar por aí e nos libertar muitas vezes das amarras que nos prendem ao chão.

"Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonhos são."
- Vida é sonho; Calderon de la Barca -



domingo, 19 de julho de 2020

Stalker Soul


Em um momento de reflexão, percebeu que o mundo estava em colapso. Os braços respondiam em conjunto as pernas que apenas realizavam seus movimentos limitados e arriscar o primeiro passo foi o momento em que tudo fez sentido. O colapso era interno, o mundo era interno, o espirito era interno, o pescoço dolorido apenas sinalizava que algo estava errado e virar a cabeça para a direita não era uma escolha naquele momento mas, com um pouco de jeito era possível arrematar o corpo e fazer com que a direção se tornasse um norte. Confuso pela pressão em seu crânio que se esvaía pelas narinas ainda intactas, assumiu uma forma robótica a qual não escolheu, mas a imposição foi necessária para adquirir a longevidade.

A leve brisa que o vento concedia enquanto o trem passava pelos trilhos de superfície era compreendida ao deitar-se após o tombo. O céu nublado, as aves que fugiam para seus ninhos esperando o temporal pareciam bem assustadas, temiam a água, as gotas, os trovões e sabiam que era necessário para a perpetuação da espécie, para a criação de mais alimento e até mesmo do próprio abrigo para as gerações futuras. Toda a tragédia que caía sobre o mundo era de fato uma benção ao mesmo tempo. O silencio era a melhor forma de compreender os momentos nos quais aquilo fazia sentido, compreender que o que chamamos de mundo automaticamente se transforma em realidade e os pensamentos são condicionados a se tornarem a realidade e esta entra no senso comum tornando-se verdade absoluta mas, o que é verdade, realidade, pensamento, condição, sentido...? Entender que a vida é um lapso em constante transformação e que a eternidade é um fardo que cabe somente a si, faria entender que não estava sozinho e que nunca estaria em um lugar só. Enquanto tudo não passava de uma armadura pesada demais que carregava. Alimentava o corpo e subjugava a mente. Sucumbindo a o que o fazia cada vez mais podre, pobre e sem esperança.

Com o passar do tempo os movimentos melhoraram, os pensamentos foram esquecidos, o passado ficou onde deveria ficar. Ao aquecer-se com seus fluídos e observar pelos novos olhos que acabara que implantar, agora com visão raio-X e infravermelho, não precisou de muito para compreender que onde se situava seria de fato o mundo que viveria o resto de sua vida, compreendia que dali para a frente o mundo seria menos hostil e não porque os seres se tornaram menos boçais mas, porque tinha se tornado mais feliz, mais sábio, mais resistente e em seu corpo biônico quase todo modificado, de humano havia sobrado apenas um fantasma de si mesmo.






domingo, 12 de julho de 2020

O poeta morto - Temporal


Nas vastas entranhas de um mundo imprevisível se vai mais uma alma que se solidariza com o tempo. As nuances de um fato sempre acarretam no resquício de uma vida inteira e a partir de um lapso temporal. Somos responsáveis por um mundo cruel, sem vida, desonesto, pecaminoso e calado. O poeta está morto e junto com ele foram levadas todas as esperanças de uma vida. Ter filhos, talvez, ser reconhecido, talvez, ser alvo de críticas, talvez, ser alvo dos rifles e das bombas, talvez, talvez, talvez e foi assim que se foi, na satisfação de uma dúvida eterna na qual subjugava as forças externas. A dúvida nunca foi sanada e o próprio nem ao menos arriscou o salto no precipício escuro e vão.

Se matou? Jamais tiraria a própria vida. Foi morrendo aos poucos, por dentro, adentrando uma resolução vital na qual se entregou ao mundo e decidiu não modificar o meio em que vivia. Se moldar a tudo e a todos o fez perder o mais importante, o amor-próprio. Um dia se percebeu em sua casa, rodeado de tudo o que sempre quis e ao mesmo tempo se viu farto de ser alguém que se molda. Num acesso de raiva, com uma faca empunhada em sua mão direita descobriu o prazer que os cortes traziam, não um prazer sexual ou carnal mas, um prazer que devolvia a si uma vida inteira. Ao levantar-se da cama, olhou o sol que batia na janela e se refratava em uma luz intensa em meio aos livros e papeis amassados no chão.

No rádio, um piano ascendia uma melodia tão bela quanto seus cortes, ele realmente não sentia dores agudas e o sangue pingando no caminho até a cozinha era acompanhado pelo piano, pelo sangue e pela vontade de tomar um café forte. Encontrando as garrafas de bebidas, preferiu livrar-se da inconsciência e obter de uma vida o máximo que ela poderia oferecer. Sentiu mais raiva ao notar que uma mosca consumia o açúcar e por nojo, o café seria amargo. Acendeu o fogo, buliu com a água ao ver em seu reflexo os dentes amarelados e a pele pálida, seus olhos continham o medo, sentia que dali para a frente iniciaria a tremedeira e todo o processo de contenção de energia. Percebeu também que o sangue no chão era pútrido e o cheiro tomava a casa percorrendo todos os cantos do quarto, da sala, do banheiro, enfim, todos os cômodos foram alvo daquela sensação, a mesma que fora sentida no inicio de tudo, que ao unir-se com a vontade transformou-se na catástrofe. O céu azul da primavera anunciava um funeral.

O céu azul de uma primavera anunciava o funeral de mais um doente, de mais um pai, um irmão, um avô. O futuro é incerto, o passado é implacável, o presente cabe a nós e o lapso temporal sempre anuncia mais uma primavera, mais um céu azul de primavera. O poeta estava morto, enquanto a casa toda fedia a sangue, café e pó. Ele degustou o café, amargo, sentiu a dor de um rasgo em sua pele e compreendeu que o tempo nunca aumenta, ele apenas se vai e se foi, como o vento que precede uma tempestade ou como o mar que recua antes de uma onda gigante.

Em suas anotações, as últimas, ele desenhou um menino que ganhava o mundo, desenhou um homem que retornava a sua terra natal e que encontrava seu grande amor. Logo após os desenhos, estava escrito em letras rabiscadas algumas palavras:

“Cá deste lado, o mundo ainda plana, sem motor.
Cá deste lado existe a incompreensão. 
Cá deste lado a vida não se assanha, sem louvor.
Cá deste lado o nada existe então.”


O poeta estava morto e no chão o sangue se tornava pó, o corpo se tornava pó, a casa em si com o tempo ruiu. O piano já sem tempo, parou. Os papéis ficaram por mais um tempo até que a mesma chuva que levou o telhado da casa, também levou as lembranças. Ali naquele lugar ergueu-se uma árvore das entranhas do poeta e esta cresceu tão rápido que ninguém mais lembrava o que havia ali. Esta árvore sobreviveu as guerras, as secas, as tentativas de urbanização e as pragas que passaram por ali. Sobreviveu também o poeta, que agora árvore, observava tudo e todos os que passavam por aquela rua e com graça ainda podia ouvir a musica imortalizada pelo rádio ouvido na sorveteria da frente, na padaria ao lado e na casa da família que se instalou ao lado do parque em que se situava.